TOMAS COKE, TINHA ASAS DE ÁGUIA
Por Sante Uberto Barbieri, no seu livro "Estranha Estirpe de Audazes"
"Anseio ter as asas da águia e a voz de trombeta para poder proclamar o Evangelho pelos quatro pontos cardiais da terra."
Tomás Coke
Durante a Conferência Anual que João Wesley presidiu em Leeds, Inglaterra, em agosto de 1778, achava-se presente pela primeira vez, numa reunião como aquela um homem que viria a figurar nos anais (história ou narração organizada ano por ano) do movimento metodista como um de seus principais atores. Seu nome era Tomás Coke, doutor em leis. Essa não era, entretanto, a primeira vez que ele entrava em contacto com os metodistas. Antes disso, havia estado relacionado com Tomás Maxfield (de quem falaremos mais adiante), que foi o primeiro pregador leigo metodista e que lhe falou da natureza da religião que abraçara muitos anos antes. Depois entrou em contacto com outros que haviam sido alcançados pelo metodismo wesleyano. Esses contactos levaram-no a modificar sua própria religião e sendo, além de doutor em leis, ministro da Igreja Anglicana, começou a pregar à maneira metodista. O interessante, no caso de Coke, é que foi levado a uma vida mais espiritual da religião cristã através da instrumentalidade de leigos, que em sua simples, porém profunda fé, tiveram o poder de mostrar-lhe algo que não encontrara através da teologia formal de sua Igreja.
A decisão de voltar seu interesse religioso com os metodistas, embora não
houvesse tido ainda ocasião de encontrar-se com João Wesley, obrigou-o mui cedo a
haver-se com as autoridades eclesiásticas. As obras de João de La Flechère e os
sermões de Wesley fizeram-lhe tão grande impressão que o compeliram a modificar completamente o conteúdo e a forma de sua pregação, com tal ousadia, que chegou a exercer o ministério fora das paredes da igreja. Ainda mais, introduziu o cântico de hinos na congregação e começou a pregar "ex-tempore". Foi admoestado pelo bispo da cidade de Bath, e Wells, seu superior na paróquia, o despediu. Os paroquianos ameaçaram apedrejá-lo. Por fim o expulsaram da igreja. Durante o debate pregou na rua, perto da igreja. Voltou a pregar ao ar livre no domingo seguinte, e com grande dificuldade pode sair ileso da multidão que quis apedrejá-lo. Um jovem e sua irmã serviram-lhe de escudo para defendê-lo. Afinal se viu obrigado a sair do lugar chamado Petherson, onde iniciara seu ministério. Nesse dia os sinos do povoado foram aos ares para celebrar sua expulsão, e o metodismo ganhou para sempre aquele que, depois de Wesley, seria a figura mais notável. João Wesley escreveu o seguinte em seu Diário, com data de 13 de agosto de 1776:
"Aqui (em Kingston) encontrei o Dr. Coke, que a propósito viajou vinte milhas (32 km) para encontrar-se comigo. Tive uma longa conversa com ele, e desde esse instante se iniciou uma verdadeira comunhão que espero jamais termine. " (1)
E o desejo se cumpriu. João Wesley já estava ficando muito idoso e anelava (desejava) encontrar quem pudesse coadjuvar (ajudar) na administração de uma obra que havia ido muito além de suas possibilidades. Como anteriormente vimos, ele pôs as vistas em La Flechère, mas não pôde concretizar a idéia. Não recuou em seu empenho de buscar algum outro, mas seus esforços resultaram infrutíferos. Agora era Deus que lhe punha ao alcance o homem que tanto desejara e de que necessitara.
Antes de prosseguir, diremos algo mais sobre seus antecedentes. Nasceu no povoado de Brecon, no ano de 1747, no País de Gales. Era filho único de pais abastados. Estudou na Universidade de Oxford, havendo-se matriculado no colégio de "Jesus" a 10 de junho de 1770. Foi ordenado diácono e três dias depois recebeu o título de Mestre em Artes. No dia 23 de agosto de 1772 foi ordenado presbítero. Em junho de 1775 recebeu diploma de doutor em leis civis. Dedicando-se ao ministério, foi nomeado vigário da paróquia de South Petherson, ficando ali até ser expulso pelos motivos já mencionados. Nesse posto extremou-se em zelo, de tal maneira que chamou a atenção dos paroquianos. Logo a igreja se tornou pequena para comportar a assistência. Apelou reiteradamente ao diretório da congregação ("vestry") para que pusesse uma galeria suplementar a fim de aumentar a capacidade do templo ante a crescente assistência aos serviços religiosos, mas o pedido foi rejeitado. Então mandou colocá-la por sua própria conta. Essa determinação já revela o caráter desse homem para quem pareceria não existir a palavra "impossível". Naturalmente, possuía ao alcance da mão recursos materiais próprios, que com freqüência o ajudaram a solucionar problemas que de outro modo lhe houvera sido difícil resolver, senão impossível. Trouxe a serviço do metodismo sua mente erudita, força de vontade inquebrantável e assombrosa amplidão de vistas, além de potencial econômico muito providencial.
Sua primeira nomeação no movimento metodista foi feita pela Conferência de 1778, como um dos ajudantes de João Wesley. Sua trajetória ascendente no seio do metodismo foi rápida. Em 1780 já o encontramos viajando extensamente e pregando sem cessar. Sob a direção de Wesley visitava as Sociedades Metodistas tratando de informar-se quanto a seu crescimento e problemas, com o fito (objetivo) de melhorar sua eficácia. Essa itinerância duraria quase sem interrupção, até ao dia em que as águas do oceano Índico o receberam em seu seio para guardar-lhe zelosamente os restos. Já em 1782 o encontramos em Dublin, na Irlanda, presidindo, por ordem de Wesley, a Conferência de pregadores metodistas irlandeses. A primeira Conferência que nessa ilha se realizou foi em 1752 e João Wesley a presidira por trinta anos com intervalos de dois ou três anos. Mas, a partir de 1782, a Conferência começou a reunir-se anualmente. Por muitos anos o Dr. Coke visitou anualmente a Irlanda para presidir a suas Conferências. Ao mesmo tempo exerceu o ministério por todo o restante da Grã-Bretanha, isto é, Inglaterra, Escócia e Pais de Gales. Em 1784 cruzou pela primeira vez o Atlântico para pisar terras americanas. Dali em diante sulcaria (navegaria) essas mesmas águas do Atlântico dezessete vezes. No total realizou nove viagens de ida e volta à América, todas por sua própria conta.
Fizemos referência a sua primeira viagem à América em 1784. Essa data marca na história do metodismo um fato transcendente, pois nesse ano foi organizada formalmente, como denominação, a primeira igreja metodista do mundo. Na chamada "Conferência de Natal" (Christmas Conference), que abriu suas sessões na véspera da data em que se comemora o nascimento de Cristo, reconheceu-se de fato a separação do metodismo americano de sua congênere nas Ilhas Britânicas. Como se recordará, em 1776 as treze colônias originais do país que compreendiam o que hoje são os Estados Unidos, proclamaram sua independência. E ao separar-se politicamente, romperam-se também os laços com a Igreja da Inglaterra (o movimento metodista, ainda que marginalizado e desprezado, acontecia dentro da Igreja Anglicana, a igreja oficial do estado inglês, e da qual João Wesley era pastor), que estava intimamente ligada ao Estado inglês. Agora que o governo inglês nada mais tinha que ver com a nova nação, tampouco a Igreja Oficial. Desse modo, João Wesley julgou que a única forma capaz de dar estabilidade à obra metodista do novo mundo (obra que se vinha levando a cabo desde 1766), seria a de constituí-la em grupo independente e dar-lhe governo, ministério, leis eclesiásticas e ritual tais que lhe garantissem vida própria. Para levar a cabo essa missão escolheu o Dr. Tomás Coke, a quem chamava seu "braço direito".
Embora a obra dos Estados Unidos começasse na data já indicada, devido às guerras da Independência, não ficou nas antigas colônias inglesas nenhum ministro metodista ordenado de procedência inglesa. Mas ficou Francis Asbury, que jamais havia sido ordenado, apesar de agir como pregador itinerante desde muitos anos. Os clérigos da Igreja Anglicana na América, ao avizinhar-se o movimento da independência, também deixaram em quase sua totalidade o país, de maneira que as condições espirituais de ambos os grupos estiveram à mercê das contingências por longos anos. Asbury conseguiu manter seus companheiros sujeitos à supervisão de Wesley, embora por muito tempo não houvesse comunicação com ele. Homem acostumado à disciplina, não concebia que um pastor sem ordenação pudesse celebrar a Santa Ceia e por isto vigiava os companheiros metodistas para que não o fizessem, e insistia, principalmente com os que se opunham a seu critério, a que buscassem a ajuda dos poucos ministros ordenados que ficaram nas ex-colônias. Pelo que se vê, esse estado de coisas não era satisfatório sob nenhum ponto de vista. Enquanto continuavam interrompidas as comunicações, enviaram a Wesley insistentes pedidos para que enviasse pregadores ordenados à América, onde, no ano de 1784, os metodistas eram já quinze mil e seus pregadores itinerantes não ordenados somavam oitenta e três.
João Wesley tentou, sem êxito, por duas vezes, convencer o bispo Lowth a ordenar, pelo menos, dois pregadores a fim de enviá-los à América. Então se viu obrigado a recorrer a uma medida extrema, justificando sua atitude na tese que, segundo o Novo Testamento, não há diferença entre o presbítero e o bispo, senão no exercício de suas funções. Recordar-nos-emos de que um seu antepassado (o bisavô João White, em 1641) já havia sustentado essa mesma tese. Portanto decidiu, ele mesmo, ordenar alguns de seus pregadores itinerantes, com a assistência de outros presbíteros. Isto aconteceu na cidade de Bristol, em 1784. Um dos que foram ordenados, o Rev. R. Whatcoat, recorda em seu Diário:
"1º de setembro de 1784. O Rev. João Wesley, Tomás Coke e James Creighton, presbíteros da Igreja da Inglaterra (Anglicana) formaram um presbitério e ordenaram a Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey diáconos e no dia 2 de setembro, pelas mesmas mãos, Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey foram ordenados presbíteros e Tomás Coke, doutor em leis, superintendente para a Igreja de Deus sob nosso cuidado na América do Norte. " (2)
João Wesley ratificou este proceder escrevendo mais tarde uma carta circular que começa assim:
"Visto que nossos irmãos americanos estão agora completamente desembaraçados, tanto do estado como da hierarquia eclesiástica inglesa, não ousamos enredar-nos novamente tanto em um como em outra. Agora estão com plena liberdade de cingir-se (prender-se, ligar-se, no sentido de submeter-se) tão só às Escrituras e à Igreja Primitiva. E nós julgamos que o melhor é que eles permaneçam firmes naquela liberdade com que Deus os fez dessa maneira providencialmente tão livres."
O título de superintendente usado para o Dr. Coke foi mudado na América pelo de bispo, porque os irmãos ali disseram que segundo as Escrituras, o uso do termo bispo era mais apropriado que o outro. Nas atas do ano de 1785 da Conferência de ministros na América, acha-se a seguinte nota:
"Como os tradutores de nossas versões da Bíblia têm usado a palavra inglesa 'bispo' em vez de 'superintendente', pensamos que seria mais conveniente, conforme as Escrituras, adotar o termo bispo." (3)
Desta maneira Tomás Coke veio a ser o primeiro bispo da Igreja Metodista no mundo inteiro. E por certo que foi digno dessa distinção, e sua obra o justificaria. É de notar que Wesley não houvera chegado a tal extremo se não fosse porque a necessidade o obrigou, e, ao curvar-se ante a necessidade, sentiu o dever de justificar sua atitude como que para dar-lhe caráter e força de legalidade. A missão do Dr. Coke nos Estados Unidos consistia em organizar os metodistas em corpo separado, que em princípio se adequaria, com ligeiras modificações, às leis canônicas e à liturgia da Igreja Anglicana, pois parecia a João Wesley que eram as melhores que ele podia oferecer-lhes dentre, todas as demais liturgias e formas de governo eclesiástico. Além disso, ia com poderes para ordenar tantos ministros itinerantes quantos estivessem em condições de sê-lo, e consagrar superintendente em pé de igualdade com ele a Francis Asbury, que foi o líder natural do grupo (metodista) americano.
Quando o Dr. Coke tratou do assunto com Francis Asbury, este recusou aceitar como terminantes e finais as ordens de João Wesley para que ele fosse consagrado superintendente (bispo). Propôs que se convocasse uma Conferência de todos os pregadores para que eles mesmos, depois de haver-se inteirado da resolução de João Wesley, tomassem as determinações que melhor lhes parecessem. Somente aceitaria tão alta responsabilidade se os colegas americanos estivessem de acordo em elegê-lo superintendente. Então enviaram Freeborn Garrettson, um dos pregadores itinerantes de maior influência entre seus companheiros, que saiu a galope para convocar os pregadores da América que pudesse encontrar para uma Conferência Geral na cidade de Baltimore, Maryland. Nela se resolveria o futuro destino do metodismo americano e se realizaria a eleição dos que haveriam de assumir a direção da flamante igreja. (4) Essa foi a tão lembrada Conferência de Natal.
Dos oitenta e três pregadores estiveram presentes cerca de setenta, e elegeram por unanimidade Coke e Asbury como superintendentes associados do metodismo americano. No segundo dia da Conferência, dia de Natal, Asbury foi ordenado diácono por Coke, assistido por Whatcoat e Vasey. No dia seguinte foi ordenado presbítero e no outro, consagrado superintendente (bispo). No serviço de consagração participou também o Rev. Filipe Otterbein, ministro alemão, grande admirador e amigo pessoal de Asbury.
Nessa mesma Conferência foram ordenados quinze diáconos, dos quais treze foram ordenados presbíteros. Dois destes foram enviados à Nova Escócia, atendendo a um chamado dali, e outro a Antígua, nas Ilhas Ocidentais. O nome adotado pela nova organização foi "Methodist Episcopal Church" (Igreja Metodista Episcopal). A Conferência adotou o primeiro livro de disciplina eclesiástica, que, em substância, era o mesmo já existente para todo o metodismo, chamado "Enlarged Minutes" (Atos Ampliados), com adaptações para as necessidades da América do Norte. Definiram-se os deveres dos pregadores, fixou-se o salário dos mesmos e se estabeleceram dois fundos: um para o sustento ministerial e outro para os gastos gerais da obra.
É interessante conhecer algo do caráter do Dr. Coke e acompanhá-lo em sua primeira viagem à América, que duraria diversas semanas. Apesar da dureza de cruzar o Atlântico em barcos tão frágeis, ocupou o tempo em estudos e se regozijou por contar tão longo tempo à sua disposição para isso. Com as incessantes viagens e excursões que tinha na Grã-Bretanha, jamais se lhe ofereceu oportunidade tão propícia para leituras prolongadas, de modo que pôde dedicar-se à leitura a vontade, "tragando" uma série de livros e dentre eles Virgílio. Anotou em seu Diário:
“Deus fez estas horas de ócio para nós. Desde agora ele será meu Deus para sempre. Posso dizer em sentido muito melhor que ele (Virgílio)”.
Realmente não foram horas de ócio, mas de estudo e meditação em preparo para a tarefa que o esperava na outra margem do mar. Essa disposição revela-se principalmente em outras notas desse mesmo Diário, com data de 24 de setembro de 1784:
"Entretive-me lendo a vida de Francisco Xavier. Oh! quem me dera ter uma alma como a sua, mas glória a Deus porque nada lhe é impossível! Anseio ter as asas da águia e a voz de trombeta para poder proclamar o Evangelho pelos quatro pontos cardiais da Terra!.. .
Na terça-feira, dia 28 de setembro, escreveu:
“Durante estes últimos dias tenho estado lendo a vida de Davi Braynerd. Oh! que eu possa segui-lo como ele seguiu a Cristo! Sua humildade, sua renúncia, sua perseverança e seu zelo ardente por Deus são, em verdade, exemplares...
Registrou na segunda-feira, 4 de outubro:
“Terminei de ler a vida de Davi Braynerd."
Desde que começou a viajar para fora das Ilhas Britânicas, não recuou em suas peregrinações pelo mundo. Em 1786, na segunda viagem à América, foi parar na ilha de Antígua, deixado pelo capitão do navio, que quase o lança de bordo por ocasião de uma furiosa tempestade que pôs em perigo de naufrágio o barco. O capitão do navio tomou o Dr. Coke como novo Jonas, supondo ser ele o causador da tempestade! E embora não chegasse a arrojá-lo ao mar, atirou todos os seus livros e manuscritos. Em Antigua o Dr. Coke se encontrou com um tal João Baxter, carpinteiro naval, que tomava conta de uma sociedade metodista de mais de mil e quinhentos membros, todos de raça negra, com exceção de dez. Essa sociedade tivera seus princípios em 1760, por iniciativa de um advogado chamado Natanael Gilbert, agricultor dessa ilha, que começou as reuniões em sua própria casa. Ele e duas de suas escravas ouviram Wesley na Inglaterra, em janeiro de 1758. Essas escravas, de origem africana, foram as primeiras pessoas negras que João Wesley batizara, e o princípio de uma obra entre os africanos e seus descendentes que se estenderia por diversas partes do globo. O Dr. Coke, nessa viagem, ia com destino a Nova Escócia, juntamente com três missionários, mas em virtude de não poder chegar por causa da tempestade, e de ter encontrado tão numeroso grupo de crentes em Antigua, resolveu deixar aqueles missionários ali. Baxter havia chegado em 1778, enviado pelo governo inglês para trabalhar em obras navais, encontrando assim os remanescentes da sociedade metodista estabelecida por Gilbert, que haviam conservado a fé, principalmente por causa do zelo de duas mulheres africanas.
O Dr. Coke, ao encontrar-se com Baxter, convenceu-o a deixar seu trabalho com o governo e entregar-se completamente à tarefa de evangelização. O doutor e seus missionários foram de ilha em ilha pregando e estabelecendo sociedades. Não podemos acompanhar o Dr. Coke em todas as suas viagens dentro dos limites que nos temos imposto nestes estudos, mas o que relatamos nos dá uma idéia de seu espírito zeloso e evangelizador.
Já mencionamos que João Wesley considerava o Dr. Coke como seu braço direito. Com o desenvolvimento que logrou o movimento metodista, João Wesley se viu na obrigação de ir adquirindo propriedades para abrigar as sociedades que iam surgindo, de maneira que em muitos lugares se levantaram capelas ou se reconstruíram propriedades para locais de culto. Mas não se tinha nenhuma garantia de que, com a morte de João Wesley (a princípio as propriedades ficaram em nome do João Wesley), essas propriedades pudessem continuar em mãos dos metodistas, o que poderia pôr em perigo a estabilidade do movimento, pois elas poderiam passar às mãos do Estado. Fazia falta, portanto, que essa entidade não oficializada, a que João Wesley chamava de "Conferência", e que consistia de uma assembléia anual que reunia para consulta os pregadores, se constituísse com personalidade jurídica, a fim de assegurar continuidade legal e permitir a posse de propriedades. Foi o Dr. Coke que sugeriu a conveniência de conseguir personalidade jurídica para essa Conferência, e que preparou o instrumento legal que se adotaria. Foi chamado "Deed of Declaration" (Ato de Declaração) pelo qual se concedia o direito de depositários das propriedades, por morte de João Wesley, a cem pregadores da Conferência Anual. Esse corpo legal subsistiu através dos anos, preenchendo-se em cada caso os claros que se verificavam. Desta maneira se garantiu na Inglaterra a continuidade do movimento que em 1797 se constituiu em Igreja autônoma, havendo sido, anteriormente, apenas Sociedades Unidas sob a direção de João Wesley.
Além das características já assinaladas, mencionaremos mais duas que também nos parecem de muita importância para revelar-nos o caráter ecumênico e liberal do Dr. Tomás Coke. Quando foi à América do Norte pela primeira vez, ficou chocado por ver o estado em que jaziam os escravos africanos trazidos por navios negreiros da África. Seu ânimo se rebelou ao ver esse estado deplorável e pregou com veemência dos púlpitos contra a infame instituição da escravatura. Isto lhe acarretou inimizade de parte daqueles que se beneficiavam com o tráfico e exploração de escravos, ainda mesmo dentro da comunidade metodista. Até ao fim da vida, tanto na Inglaterra como em outras partes, não deixou de levantar sua voz de protesto contra esse abuso abominável.
Fizemos referência a sua atividade na ilha Antigua e noutras das de Sotavento. Durante essa excursão simpatizou sobremaneira com a raça africana e surgiu nele um desejo poderoso de estender seu ministério até a África. Em seu Diário escreve:
"Desde minha visita às ilhas (índias Ocidentais), descobri que tenho um dom especial para falar aos negros. Parece-me uma coisa irresistível. Quem sabe se o Senhor não me está preparando para uma visita, nalgum tempo futuro, às costas da África?" (5)
Desse desejo seu nasceria a obra missionária que a Igreja Metodista da Inglaterra começaria no continente Africano.
A outra característica marcante de Dr. Tomás Coke é seu amor pela liberdade. Em 1779 foi, com Francis Asbury, felicitar o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, em nome da Igreja Metodista Episcopal desse país. A nota que levaram começava assim:
"Nós, bispos da Igreja Metodista Episcopal, conjunta e humildemente solicitamos em nome de nossa Sociedade vossa atenção, a fim de poder expressar os calorosos sentimentos de nosso coração, e de apresentar, a V. Excia., nossas sinceras congratulações pela vossa eleição à presidência destes Estados..." (6)
Este passo significou um grande desgosto a seus irmãos metodistas da Inglaterra, que o admoestaram por achar que em sua posição de súdito britânico (era inglês) não lhe correspondia tal manifestação, e aprovaram por unanimidade um voto de censura contra seu caráter. Apesar disso, o Dr. Coke deu informações sobre a obra missionária que levara a cabo, e não puderam fazer outra coisa senão ouvi-lo com interesse.
Contudo, a maior obra do Dr. Coke consistiu em sua paixão missionária, tanto assim que o apelidaram de "Ministro das Relações Exteriores do Metodismo". Já fizemos referência a umas poucas de suas viagens. É realmente uma história extraordinária a que passa ante nossos olhos quando revisamos as memórias que este homem deixou em seu Diário. Como dissemos, era filho único de uma família abastada; além disso, casou-se duas vezes e ambas com mulheres de muitas posses, que tinham seu mesmo espírito, tanto em fervor religioso como em generosidade.
Em realidade o Dr. Tomás Coke foi o "Conselho de Missões" do metodismo primitivo: o que formulava os planos, o que os executava e o que assumia a responsabilidade maior pelos gastos. Comprometia seus recursos para cobrir tudo o que se fizesse necessário para a obra que se ia levando a cabo em diferentes partes do mundo. Por exemplo, em 1794, se publicou informação sobre as entradas e saídas que se registraram durante o ano precedente para a obra missionária, e ali ele aparecia como credor de uma importância equivalente a mil e cem dólares, por adiantamentos que fizera para enfrentar as despesas. Terminou doando toda essa importância à Causa.
Não contente com suas incessantes viagens pela Inglaterra, Escócia, Irlanda, País de Gales, América e ilhas inglesas do Caribe, chamadas de Índias Ocidentais, lá pelo fim de sua carreira viveu obcecado por abrir uma obra missionária na Índia. Em 1813 compareceu perante a Conferência Anual na Inglaterra, suplicando a seus irmãos que o enviassem, junto com outros missionários, a esse ponto distante, com o qual havia estado em contacto pela correspondência que mantivera ao longo de muitos anos. A Conferência Anual achava seu plano missionário para a Índia coisa descabida e impossível de levar a cabo, especialmente pela erosão financeira que isso implicava. Além disso, agia contra o plano a oposição dos que, na Inglaterra, mantinham interesses comerciais na índia e que não desejavam que a influência do Evangelho viesse a prejudicá-los economicamente. Por sua vez, alguns amigos trataram de dissuadi-lo, achando que sua idade era empecilho para alcançar o propósito. Contava, então, 66 anos e sua saúde era precária. A um amigo que lhe escrevera querendo convencê-lo a abandonar seus desígnios, respondeu:
"Estou morto para a Europa e vivo para a índia. O próprio Deus me disse: "Vai a Ceilão". Preferiria ser arrojado nu a suas costas, e sem um amigo, a deixar de ir. Estou estudando a língua portuguesa continuamente." (7)
Quando, finalmente, a Conferência Anual rejeitou seu projeto, ele voltou a seu aposento chorando de desespero pelas ruas. Passou quase toda a noite em lágrimas e orando. Um missionário amigo, que o havia acompanhado na noite anterior, encontrou, na manhã seguinte, a cama estendida como estava na véspera. Realmente o Dr. Coke não havia deitado, e quando voltou no dia seguinte à sala de sessões fez um apelo comovedor e patético, para que a Conferência revogasse a anterior decisão. Novamente se ofereceu para ir, e além disso pôs à disposição da Conferência a importância de trinta mil dólares para fazer face às despesas. Ante esse dramático oferecimento, escudado no apoio de alguns amigos, a Conferência já não podia resistir. Se o tivesse feito, teria parecido oposição à própria vontade de Deus! Finalmente se votou autorizando-o a ir e levar consigo sete companheiros, um para a África do Sul e os outros para a Índia. Regressou a seu quarto chorando, agora, de alegria, e dizendo ao mesmo missionário que o acompanhara no dia anterior: "Não te havia dito que Deus responderia a nossas orações?"
No dia 30 de dezembro de 1813 o Dr. Coke e os outros missionários partiram para a Índia. A viagem foi demasiado longa para o velho e enfermo visionário. Muitas tempestades haviam açoitado o comboio em que iam, e na manhã de 3 de março de 1814, quando estavam próximos da meta, o criado que o chamou à sua porta às cinco e meia, hora em que sempre se levantava, não obteve resposta. O Dr. Çoke jazia estendido no solo do camarote do seu navio. Sobre seu rosto se esboçava, porém, um sorriso. Parece que se levantou para pedir socorro e caiu sem vida após um ataque apopléctico.
Seu corpo foi sepultado no mar. O seio das ondas recebeu o corpo do grande missionário. Os soldados que estavam no barco foram alinhados para prestar-lhe a homenagem póstuma, enquanto o sino do barco tocava tristemente o adeus. Todos os passageiros e tripulantes assistiram, em respeitoso silêncio, à cerimônia do sepultamento, na hora em que o sol tramontava (se escondia) nas águas. Disse alguém que o corpo de uma alma tão grande somente podia ter por sepultura um lugar tão imenso como o oceano. Sua obra não se escondeu com o desaparecimento daquele dia.
Apesar de seus companheiros ficarem consternados com sua morte, prosseguiram na empresa (empreendimento). E plantaram em terras longínquas a semente da fé, que com os anos produziria frutos permanentes e abundantes. Quando na América se recebeu a notícia de sua morte, a Conferência Anual pediu a Francis Asbury que pregasse o sermão em memória do falecido. Seu antigo colega recordou a ocasião em seu Diário:
"Domingo, 21 de junho de 1815. Ontem por decisão da Conferência preguei o sermão em memória do Dr. Coke — benévolo de alma e mente, do terceiro ramo do metodismo de Oxford — um gentil homem, erudito, e para nós, Bispo. Como ministro de Cristo foi, em abnegação, labores e obras, o maior homem do último século."
Maior tributo do que o que lhe rendera o Bispo Asbury não poderíamos fazê-lo. Tomás Coke não apenas foi o homem mais proeminente de sua época, entre os que Deus levantou no seio do movimento metodista, mas a sua figura ainda nos desafia a que não deixemos de ir “até aos confins da terra" em obediência ao mandado de Cristo de "Ide e pregai o Evangelho a toda criatura".
NOTAS:
(1) Stevens, A., Op Cit, Vol I, pág. 131.
(2) Citado por “A New History of Methodism”, Vol I, pág. 231.
(3) Das Atas da Conferência Annual dos Estados Unidos de 1785, pág. 50.
(4) Para maiores informações, ver o Diário de Asbury, datado de 14 de janeiro de 1784.
(5) Barclay, Wade Crawford, Op. Cit., Vol I, págs 108-109.
(6) Idem, pág. 110.
(7) Citado por Stevens, A., Op. Cit, Vol III, pág. 330.
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