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Rio, 17/1/2008
 

Conversão, Homem Novo e Compromisso (Dr. José Miguez Bonino)

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(Texto de Dr. José Miguez Bonino extraído do Capítulo II do livreto "Metodismo: releitura latino-americana, publicado em 1983 numa co-edição pela Editora UNIMEP e a Faculdade de Teologia da Igreja Metodista/Editeo a partir de uma série de Conferências proferidas pelo seu autor na Semana Wesleyana em maio de 1882 na Faculdade de Teologia. A tradução do texto é de Adesses Antônio Oliveira Araújo)


Uma das questões teológicas que surge, inevitavelmente, em nosso propósito latino-americano de assumir, segundo a nossa fé, um compromisso com a história de nosso povo, é a antiga pergunta sobre a relação entre a ação de Deus – seus efeitos salvíficos – e nossas ações, projetos, ideologia e conflitos humanos.

Se a fé tem de ser vivida na história, como história, não podemos imaginar um sujeito humano “transcendental” que se relacione com Deus separadamente do sujeito humano histórico que atua no plano temporal. Nem podemos imaginar uma ação transcendental de Deus que opera na história fora de, ou nos vazios da corrente de processos que os seres humanos são sujeitos.

A teologia protestante tradicional tem estado, tão preocupada em evitar qualquer “titanismo”, qualquer tentação de sacralizar a obra humana à custa da transcendência divina, que nos parece correr o risco de esvaziar a ação humana de qualquer significado teológico. A referência a Deus só opera relativizando, limitando todo processo humano, restringindo o significado de toda ação humana ao campo do penúltimo e, portanto, explícita, ou implicitamente ao dispensável, ao opcional ou ao menos, em última palavra, ao não significativo.

Na história do Protestantismo, parece-me que Wesley aporta um elemento novo em sua doutrina e prática da conversão e santificação. A viva discussão a respeito tem girado habitualmente em torno da pergunta se Wesley foi verdadeiramente protestante ou se sua doutrina da graça e santificação está “eivada” de catolicismo. Assim, creio que o tema fica limitado a uma questão confessional. Para nós é mais importante tratar de entender a contribuição que Wesley possa dar à pergunta teológica que propomos – sejam quais forem suas relações com as supostas “ortodoxias” católicas ou protestantes a respeito.


QUE BUSCAVA WESLEY?

Os biógrafos de Wesley têm debatido apaixonadamente a relação entre as suas lutas e “resoluções” em 1725 e a experiência de Aldersgate de 1738 (1). Tenho para mim que a chave do ministério e da teologia de Wesley achava-se mais na unidade e convergência das duas experiências do que no seu contraste e descontinuidade.

Até 1725, efetivamente, Wesley agoniza sobre a questão do sujeito cristão ativo – o “sócio” autêntico e genuíno de Deus no pacto. Que é um verdadeiro cristão, um cristão sério e comprometido? Em termos de conteúdo específico de uma vida cristã ativa, não nos parece que tenha inventado muito. Mais sintetizou a prática ascética, filantrópica e devocional que a melhor literatura de sua época lhe oferecia. Não alterou grandemente esses conteúdos, que chegaram às gerações metodistas futuras – para seu benefício... e muitas vezes para sua desgraça! Mas em 1738 verificou-se para ele, existencialmente, uma resposta mais profunda e decisiva: a antiga percepção paulina e protestante e que é Deus mesmo quem cria esse sujeito autêntico e genuíno, o verdadeiro “sócio” do pacto: o sujeito cristão ativo é um dom.

É, sem dúvida, a resposta de Lutero. Mas à pergunta de Wesley. Wesley não está prioritariamente preocupado em “acalmar a um Deus irado” mas ansioso a respeito de como servi-lo plenamente. Consequentemente – se posso permitir-me uma licença teológica – Wesley recebeu de Lutero uma doutrina “da santificação pela graça mediante a fé”. A santificação continua sendo para ele a meta da redenção e da vida cristã. Há que pregar a fé porque é a única porta de acesso – ou mais corretamente o único caminho viável – para ingressar-se no âmbito da santificação e avançar por ele.

Creio que esta progressão destaca-se em todos os grandes sermões de Wesley. A partir desta interpretação gostaria de considerar, primeiramente, o tema da conversão e a seguir o da santificação (embora seja evidente que essa separação a respeito de Wesley é artificial e só pode ser feita com propósitos didáticos).

O que em termos biográficos temos chamado a unidade e a convergência das experiências de 1725 e de 1738, poderíamos transpô-lo em chave teológica como a integração de graça e amor. Nesse sentido, toda a teologia de Wesley nos parece uma soteriologia que, dentro do marco protestante clássico, mas sem submissão servil ao mesmo, trata de articular justificação e santificação de tal maneira que a vitória da graça se revele e se realize na operação do amor (2)


A FORMULAÇÃO WESLEYANA DA CONVERSÃO

Deus se propõe a criar um povo santo e este propósito chega a ser uma realidade atual, experimentada, visível, quando homens e mulheres se voltam para Ele com fé. Talvez se possa resumir assim a mensagem de Wesley. Estas são as boas novas. E são, verdadeiramente, boas novas para os pobres da terra – para as massas miseráveis dos deserdados que se amontoam nos novos centros industriais e mineiros, absorvidos pela crise do nascimento do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes do capitalismo industrial moderno, vítimas impotentes da anomia social. Não somente eram aceitos por Deus como também podiam ser “feitos de novo” – receber um poder e uma dignidade efetivos, visíveis, inerentes, mensuráveis. Podiam chegar a ser sujeitos conscientes e ativos de uma nova vida. Suas obras contavam; sua vontade era livre. Numa sociedade em que o triunfo se constituía no significado da vida, oferecia-se o mais alto triunfo possível – acessível a todos mediante a fé. O ingresso nessa realidade é a “conversão”.

A maior parte dos estudiosos da teologia de Wesley concordam que ele identifica conversão com regeneração (3). Ainda que algumas passagens justifiquem um certa distinção, as discussões wesleyanas mais características do tema da regeneração podem ser tomadas legitimamente par apresentar seu conceito de conversão. Em geral, podemos situá-lo dentro da estrutura doutrinal clássica protestante do ordo salautis. As ênfases distintivas de Wesley me parecem agrupar-se – com relação ao que dissemos acima – em torno de dois focos: a questão da continuidade e singularidade e a questão da “consciência” ou “experiência” da regeneração.

A Wesley apraz explicara regeneração utilizando a analogia do “nascimento” quase em forma alegórica (4). Dois fatos se destacam nessa alegoria:

De um lado o caráter decisivo da regeneração. Há um “antes” e um “depois”. A conversão marca uma volta decisiva (conversio, no sentido original) do pecado para Deus.

Sabemos que Wesley abraçou por algum tempo a idéia (que Pedro Bohler lhe havia ensinado) do caráter instantâneo dessa mudança, mas logo vacilou a respeito para admitir uma variedade de possibilidades. Mas jamais duvidou que havia uma mudança, uma volta decisiva, uma diferença qualitativa criada por este ato de Deus e do homem, chamado conversão ou regeneração.

Mas a analogia sublinha também a continuidade: é a mesma pessoa. Há uma vida anterior ao nascimento – com os mesmos órgãos de percepção e sentimento – que agora se torna atual e operosa pelo poder do Espírito.

Mais importante ainda, a analogia é ampliada para referir-se ao permanente crescimento até a plena maturidade.

A conversão, desse modo, olha para trás, para uma humanidade real ainda que impotente, e olha para a frente, para uma maturidade humana ainda que imperfeita mas cada vez mais plena (até que lhe conceda, nesta vida ou na vindoura, uma perfeição total, a realidade completa do amor).

O próprio Wesley não relacionou de maneira consistente a conversão à doutrina agostiniana da graça preveniente, que ele mesmo introduzira. Mas William B. Pope – sem dúvida o teólogo sistemático mais consistente da tradição wesleyana até o presente século – o faz de maneira que dá à conversão um lugar próprio e distintivo, colocando-a no umbral da nova vida, como movimento pelo qual o homem, no poder dessa graça preveniente que em virtude da expiação que “rodeia e abarca”a humanidade inteira é acessível a todos, coopera com a graça salvífica de Deus, volvendo-se do pecado para Deus. Neste sentido, a conversão o ponto de encontro da busca humana e a graça de Deus, “o pátio exterior do templo cristão”. Entretanto Pope não limita sua interpretação ao âmbito estritamente religioso mas antes, olhando a conversão também sob a perspectiva ética, afirma uma continuidade entre a operação do amor sob a graça preveniente e a transformação que o eleva ao amor da santificação. Por certo que nos movemos aqui num terrenos próximo a uma das possíveis – e recentemente dominantes – interpretações da doutrina católica romana. Mas isso não deve inibir-nos – como sustentaremos mais adiante – de prestar atenção a este significativo propósito.

Tanto para Wesley como para Pope a conversão corresponde mais estritamente ao começo da vida cristã, como um “salto” decisivo inicial, diríamos “qualitativo”. Mas ambos admitem um uso mais geral do termo para referir-se às “crises de crescimento” da vida cristã. Esta vacilação me parece documentar uma vez mais a dupla ênfase em singularidade e continuidade que, tanto na esfera religiosa como ética, caracteriza a doutrina wesleyana da conversão.

O outro aspecto é a bem conhecida ênfase na “experiência”, a consciência que acompanha a conversão: o homem é consciente da nova situação em que se encontra. O novo nascimento testemunha-se a si mesmo à consciência, com uma auto-evidência que não necessita de provas externas, como não é necessário que nos provem qual é a luz do sol e qual a das estrelas. Entretanto não se trata de um mero sentimento subjetivo: deve ser reforçado pela qualidade de vida, a disposição e a concreta realização de atos de amor naqueles que o Espírito testemunha sua presença e operação. Assim, a regeneração verifica-se a nível consciente tanto em sua dimensão religiosa como ética. E em ambas há novidade e continuidade. Na minha opinião, o ponto central se acha, no fim das contas, na consciência moral, que é por sua vez confirmada e elevada a um novo plano de auto-compreensão e de realização.

Se estas observações são válidas podemos resumir a doutrina wesleyana e da conversão tomando em conjunto os seguintes elementos:
a) ela se situa na perspectiva da busca humana de excelência moral;
b) gira em torno do poder capacitador da graça;
c) culmina no aperfeiçoamento da luta moral do homem, mas não mediante um mero crescimento quantitativo mas mediante uma mudança qualitativa produzida pela graça de Deus;
d) vincula a experiência ética prévia do homem ao seu subseqüente crescimento na graça, e maneira que o homem novo (regenerado) é ao mesmo tempo a plenificação e a instalação do homem velho (não regenerado);
e) invoca a consciência subjetiva – reivindicada pela ação correspondente – desta transformação fundamental.

AS CONDIÇÕES PARA REPENSAR A DOUTRINA WESLEYANA

A meu ver seria um grave erro, carregado de conseqüência negativa, a tentativa de transferir diretamente para a nossa situação o ponto de vista wesleyano da conversão. De fato, quando se tenta fazê-lo, como em algumas “campanhas evangelísticas”, o que resulta é uma caricatura do original. E não poderia ser de outro modo, porque as condições presentes impõem às concepções e formulações anteriores uma conotação muito diferente. É necessário, pois, empreender uma concepção. E esta deve atender, pelo menos, três conjuntos de fatores.

A nível teológico é necessário superar o caráter formal das articulações doutrinárias de Wesley com relação a pontos decisivos: a cristologia, a noção de amor e a própria concepção de Deus. Num estudo sério e ponderado, John Deschner tratou de ler a cristologia de Wesley “no melhor sentido possível”. Apesar disso, tem que reconhecer várias falhas graves. Uma delas, que nos interessa particularmente aqui, é a falta de interesse de Wesley sobre a humanidade de Jesus Cristo como realidade histórica concreta, omissão agravada por uma ênfase abstrata na lei em relação ao ofício profético e por sua dificuldade em reconhecer plenamente a realidade da humilhação. Como veremos, estas deficiências se refletem na forma de conceber aquilo que é o centro da doutrina wesleyana da santificação, a saber, a noção de amor. É possível indicar a razão dessas deficiências. Wesley podia pressupor o conteúdo dessas doutrinas. Portanto, o que se tornava urgente era vitalizar e dar eficácia a um “esquema de salvação” cujo embasamento teológico poderia dar-se por assentado.

A renovação bíblica e teológica dos últimos cinqüenta anos – para não falar dos estudos crítico-históricos que a precederam e a fizeram possível – obriga-nos a variar decisivamente a perspectiva. O que tem que ser profundamente revisado é o conteúdo da visão com que estes esquemas teológicos operavam. O Deus das Escrituras, o Jesus dos Evangelhos, o conteúdo da salvação, o contexto da compreensão bíblica do amor, estão longe de coincidir com os significados “recebidos” do século XVIII. O tema central é em que Deus cremos, quem é o Cristo redentor, que amor nos é oferecido e requerido como substância do Reino que irrompe? Noutras palavras, temos que repensar como conteúdos (e não só formalmente) de que e para que nos convertemos. O simples ato de que temos que formular tais conteúdos em termos do Reino e da história da salvação, da proclamação do jubileu da graça de Jesus, da esperança de novos céus e nova terra – mais do que em termos estáticos e metafísicos característicos de boa parte da tradição – introduz uma mudança decisiva na concepção da conversão.

O segundo conjunto de fatores tem que ver com as pressuposições filosóficas, psicológicas e sociológicas das formulações do século XVIII. Já vimos como os condicionamentos sociais da época afetaram o metodismo nascente. A visão da vida, o ethos, o modelo humano que surge com o mundo moderno tornados possíveis e requeridos pelas novas condições econômicas e sociais canalizam as energias do avivamento religioso. Ao afirmar tal coisa, não desconhecemos os elementos proféticos da mensagem metodista aos quais já nos referimos. Mas em que pese esses elementos, é preciso reconhecer que o modelo humano em termos do qual se vive a experiência da conversão e da nova vida é o que corresponde ao indivíduo eficiente e produtivo da sociedade industrial. A ascensão econômica e social do metodismo testifica essa simbiose.

Não obstante os poderosos movimentos filosóficos que têm lugar na Grã-Bretanha do século XVIII, a conceitualidade (conceptualidade) teológica se move mais amplamente na perspectiva metafísica aristotélica do escolasticismo (católico ou protestante). Aqui somente me interessa assinalar a peculiar relação que se percebe nessa perspectiva entre ser e atuar. Tanto com relação a Deus como ao homem, concebe-se um “ser” em si, que por conseguinte “atua” ou “se manifesta”. O ethos da evangelização de Wesley parece desafiar esta concepção, mas sua teologia segue presa a ela. Consequentemente, faz-se possível conceber uma conversão ou regeneração que tem lugar num plano metafísico e só depois é “refletida” ou “atuada” na história – numa espécie de “segundo momento”. Não se trata agora de polemizar contra esta concepção. Basta assinalar que, quaisquer que hajam sido seus valores na interpretação do Evangelho em diálogo com uma certa concepção filosófica, não é nem radicalmente bíblica nem adequada à nossa situação. Nem a Bíblia parece interessar-se num “ser” de Deus que estaria além ou separado de sua cão nem concebe – como tão pouco o faz o pensamento moderno – uma pessoa humana constituída à parte das ações e relações da existência histórica.

A observação anterior deve ser ampliada em relação com as noções de interioridade e subjetividade. Na idéia metodista tradicional de conversão, a consciência subjetiva é concebida em forma individual e auto-contida. A mudança religiosa tem lugar num “santuário interior”, “a sós com Deus”, como se diz. Esta crítica pode parecer arbitrária à luz das repetidas afirmações de Wesley sobre “uma santidade social”, seu rechaço de “uma religião solitária” e as medidas práticas que toma para assegurar o crescimento comunitário em fé e santidade. Mas creio que uma exegese cuidadosa dos contextos em que tais expressões aparecem mostrará que a sociedade não é, para Wesley, um conceito antropológico, mas só um arranjo conveniente para o crescimento do indivíduo.

Finalmente, é a alma individual que é salva, santificada, aperfeiçoada. A comunhão é, em última análise, um externum subsidium. Tais idéias são, no mínimo, uma ficção à luz do que hoje sabemos da psicologia humana – do subconsciente, dos símbolos, dos mecanismos ideológicos. A consciência não é uma área “privada”, mas o foco de um reflexo processo que inclui relações históricas, no tempo e no espaço. Nossa consciência de nós mesmos (auto-crítica) se plasma em termos das representações sociais e dos símbolos dominantes de uma sociedade (ou de grupos de domínio dentro dela).

Nossa “audição” de uma “mensagem” é mediada pelo “código” predominante em nosso meio. Qualquer “conversão” concreta é uma resposta a um desafio mediado, no qual certa forma de consciência e certa práxis já estão pressupostas. A menos que o desafio se refira explicitamente a tais formas de consciência e conduta, só conseguirá reforçá-las inconscientemente. Não há conversão no vazio.

Estas observações críticas não têm por objeto depreciar a conversão ou minimizar sua importância. Muito ao contrário, ao por em relevo as limitações inerentes à época em que se plasmou, indicam uma busca da maneira como a conversão possa readquirir seu lugar e significado central na responsabilidade evangelizadora da Igreja na atualidade. Tal coisa me parece urgente e decisiva para o Cristianismo no momento presente.


NOTAS PARA UMA RELEITURA

Do ponto de vista fenomenológico – ou fenomênico – desejaria definir a conversão como o encontro entre uma condensação da mensagem cristã como chamado (apelo) e uma resposta pessoal consciente e comprometida. A conversão caracteriza-se, pois, por uma consciência – como afirmava a tradição metodista – tanto em relação com o conteúdo da mensagem como uma auto-consciência de compromisso em uma nova relação e condição.

Ontologicamente (se posso usar o termo) a conversão é o processo pelo qual Deus se incorpora ao homem, em sua existência pessoal, para uma participação ativa e consciente em seu pacto com a humanidade, tal como tem sido testificado, renovado e assegurado em Jesus Cristo.

Para que este chamado seja significativo, tem que ser articulado em termos de uma problemática que corresponda ao nível das necessidades e esperanças do ser humano de hoje, tanto pessoal como coletivamente. Isso não significa, por certo que a mensagem deva aceitar a validez ou adotar os conteúdos e características que tais esperanças e expectativas possam tomar. Uma cuidadosa observação do Novo Testamento nos mostraria que a centralidade de Jesus Cristo e o chamado à fé para Ele se expressam, no Novo Testamento, em marcos de referência substancialmente distintos e às vezes aparentemente contraditórios (pense-se nos sinóticos, no quarto evangelho, em Paulo, em Hebreus). Jesus Cristo é sempre o mesmo, porém não na identidade estática dos objetos ou dos eventos “concluídos”mas na identidade dinâmica do Espírito vivente – como bem o atesta a história da Igreja.

Em nossa particular situação latino-americana (ainda que não só aqui) o homem experimenta, individual e coletivamente, sua existência como que bloqueada artificialmente, aprisionada por razões estruturais e ideológicas que lhe impedem sua realização material e espiritual.

A mensagem cristã não pode responder a essa situação evitando o nó central do problema e oferecendo qualquer as[ida substitutiva ou escapista. Cristo viria a transformar-se assim em um soter de um culto de mistério ou um eon de uma seita gnóstica (algo que o Novo Testamento rechaça radicalmente mais que mais de uma vez voltou a infiltrar-se no anúncio da mensagem). Ao contrário, uma mensagem autêntica deve relacionar a totalidade da mensagem cristã às condições objetivas e subjetivas do nosso mundo. Jesus Cristo é o modelo e o Mediador de uma verdadeira vida humana – pessoal e coletiva – não um meio para alcançar alguma exaltação subjetiva sobre-humana!

A meta da conversão não é mera assimilação de uma mensagem ou o assentimento formal a uma doutrina, mas “a criação de uma nova criatura”. Este é um lugar comum que poucos negariam. Não obstante, é constantemente contra-dito no processo evangelizador tal como frequentemente acontece. Espera-se que o povo responda com formas – geralmente muito padronizadas – de resposta aceitando uma formulação verbal. O que ocorre (sociológica e psicologicamente falando) nestes casos é simplesmente que uma pessoa aceita (por uma série de razões) sua incorporação numa comunidade religiosa. Noutras palavras, a comunidade se reproduz a si mesma mediante a evangelização. No Novo Testamento, ao contrário, se não me equivoco, o chamado à conversão é um convite ao discipulado, seja como o chamado do próprio Jesus para segui-lo ou a forma apostólica de participação mediante a fé na comunidade messiânica, que é o povo que anuncia e testemunha o Reino vindouro. O evangelho não pode girar em torno de si mesmo como uma auto-reprodução. Seu centro não pode ser outro que não o Reino mesmo. Consequentemente, envolve uma comunidade comprometida com um discipulado ativo no mundo.

No metodismo primitivo, esse compromisso comunitário com o Evangelho em meio das condições concretas de seu mundo é claramente perceptível. O chamado tinha um conteúdo concreto testemunhado nas “Regras Gerais”. Isto era o que significava concretamente “seguir a Cristo” para a comunidade e o que homens e mulheres eram convidados a fazer no poder do Espírito. Era o rosto presente e discernível da “nova criatura”. É óbvio que se tratava de uma imagem ligada a uma época. E que como tal não pode nem deve ser reproduzida fora de sua época. Tal onipresença histórica não é um defeito: foi seu valor e importância.

Em contraposição, nosso chamado evangelizador é muitas vezes vazio: então os homens o enchem, talvez inconscientemente, com os esteriótipos dominantes do que significa ser “religioso”- as imagens aceitas, estandardizadas, ideologicamente carregadas de piedade. Como tais, aceitam-nas ou as rechaçam. A menos que a comunidade evangelizadora confronte o desafio de um testemunho específico pertinente às condições atuais, a evangelização está condenada a ser um mero instrumento de reprodução e sacralização das condições desumanizantes nas quais o homem vive. Em termos muito simples, a evangelização deve tratar a questão: que significa, concreta e especificamente, seguir a Cristo, em pensamento e ação, no mundo de hoje?

A tomada de consciência ou o processo de uma auto-consciência numa nova situação é um processo social-pessoal e auto-reflexivo. A psicologia e a sociologia modernas, o têm demonstrado claramente. Não há consciência puramente individual ou vazia de um conteúdo de ação. A evangelização tem, portanto, que relacionar-se com a forma em que grupos humanos situam-se a si mesmos no mundo, suas cosmovisões, suas formas de representação social, sua consciência de classe e de grupo, seus modos de ação. Isto significa que a conversão pode produzir-se em resposta a uma mensagem verbalmente articulada ou a uma determinada práxis comunitária dos crentes. Finalmente, ambas as coisas hão de produzir-se. Mas a consciência pode do reconhecimento de um conteúdo conceptual para uma forma de vida, ou de um compromisso assumido com uma práxis comunitária para a aceitação da auto-compreensão (com referência à mensagem) implícita nela. Por isso nos confrontamos novamente com a centralidade de uma comunidade praticante, como comunidade comprometida numa ação específica no mundo, como a “forma de Cristo” na qual se fundem a articulação verbal e a articulação “atuada” e portanto o processo de conversão pode ter lugar. Esta afirmação não diminuiu a centralidade da ação do Espírito Santo. Porque – segundo me parece – o que diferencia o Espírito Santo dos “espíritos” mágicos é que aquele opera mediante mediações históricas. Tal parece ser o significado da Encarnação e da Igreja.

“...cada vez me convenço mais de que a compreensão da conversão é verdadeiramente a questão central para as igrejas em nossa época. A conversão, entendida como fora da história ou apartada dela, deve ser reapropriada e compreendida em relação direta com essa história” (5).

Assim formula o jornalista e teólogo neo-evangélico Jim Wallis a convicção que o leva a escrever sua obra sobre o tema. Concordo totalmente com ele. As observações críticas que temos formulado têm por objetivo, precisamente, aclarar o caminho para uma evangelização digna da radicalidade do Evangelho e da urgência de nosso tempo. Para citar novamente Wallis:

“Para isto é a evangelização. Seu propósito é chamar para a conversão e faze-lo em sua integridade. A questão em jogo mais controvertida no mundo, e ainda na Igreja, é se seguiremos a Jesus e nos colocaremos sob a insígnia de seu Reino. O evangelista propõe essa questão e a dirige ao coração de cada indivíduo e da sociedade. A evangelização confronta a cada pessoa com a decisiva eleição por Jesus e o reino e desafia a opressão da velha ordem com o poder libertador da nova. O Evangelho do Reino provoca uma mudança fundamental em cada vida e é um aguilhão em qualquer ordem social, do primeiro século ou do século vinte” (6).


NOTAS
1) Sabe-se que M. Piette considera as resoluções de 1725 a verdadeira conversão de Wesley, relacionada com seu descobrimento de Taylor e Kempis e sua decisão de dedicar toda sua vida a Deus.
Piette, John Wesley in the Evolution of Protestantism (New York, Sheed and Ward, 1937), pp. 305-312.
Veja-se também A. Léger, La jeunesse de Wesley (Paris, Machette, 1910), pp. 77-82 et passim. Em linha contrária às obras de Cell, Cannon, etc.

2) Uma comprovação da centralidade dessa unidade para Wesley pode ser vista no estudo de suas controvérsias. Com efeito, sua atitude geralmente “latitudinária” para as disputas teológicas torna-se combatida quando percebe que esta relação graça-amor se acha ameaçada, seja por uma graça que “se fecha sobre si mesma”sem tornar a vida moral inerentemente necessária (calvinismo, quietismo, antinomianismo) seja porque escamoteia a graça, exaltando excessivamente o poder da vida ética (moralismo, legalismo).

3) Em toda esta secção nos abstivemos de dar referências bibliográficas que seriam incompletas ou extremamente trabalhosas. Recomendamos ao leitor as obras clássicas de Cannon, Lidstrom, etc., que oferecem abundante bibliografia.

4) Veja-se, entre outras referências, as notas em João 3; o sermão XLV: II, 2 2 o sermão XIX: I, 8-10.

5) Jim Wallis, The Call to Conversion (San Francisco, Harper and Row, 1981), p. XVI.

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