Não quero escandalizar ninguém. Sei que a frase epígrafe, transcrita acima sem quaisquer adjetivos ou atenuantes, contradiz a mensagem bíblica e uma das mais caras doutrinas do metodismo: a santificação. Muitas pessoas, instruídas na comunidade cristã desde a infância, certamente irão retrucar repetindo até à exaustão a recomendação do autor da carta aos Hebreus: “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (12.14). Além disso, metodistas que amam e conhecem a história de sua igreja recordarão que Wesley considerava “esta doutrina” como “o grande depósito que Deus havia confiado ao povo chamado metodista” (cf. Letters, VIII, p. 238, 15/09/1790), o qual, conforme ele cria, fora providencialmente levantado para espalhar a santidade bíblica por toda a terra. Invoco, aceito e concordo com todos esses argumentos!
Que conversa é essa, então, de que não há lugar para os santos no reino do Pai celeste? Minha intenção, na verdade, ao postular tal afirmação é estimular a reflexão sobre o que entendemos por santidade. Aliás, essa é mais uma das muitas palavras do nosso vocabulário teológico desgastadas pelo mau uso. O abuso chega a ser tão grande que, em muitas circunstâncias, acaba-se por defender exatamente o contrário do que as Escrituras nos ensinam sobre o tema. Estou convencido de que há, de fato, uma concepção bastante comum do que é santidade que não apenas o Senhor recusa, mas abomina por completo. Portanto, não basta reivindicar santidade; é preciso o discernimento do Espírito para diferenciar a santidade segundo o coração de Deus daquela que nada mais é do que projeção da vaidade humana. Examinemos isso de mais perto.
A santidade segundo os olhos humanos é, antes de tudo, o resultado do próprio empenho em buscar a perfeição, do esforço determinado em realizar ações com o fim de conquistar o favor divino. Quem age assim se julga autorizado para exigir que Deus atenda as suas petições. Por confiar em si mesma (e não, acima de tudo, em Deus) e se considerar justa, tal pessoa ora como o fariseu da conhecida parábola e não hesita em exibir as suas credenciais: “não sou como os demais homens” (cf. Lc 18.9-14). Assim concebida, essa suposta “santidade” facilmente se converte em moralismo, conduz ao orgulho e acaba por desprezar as outras pessoas. Por via de regra, se compraz no cumprimento formal de normas e preceitos, em geral, um conjunto de proibições, mais do que recomendações pró-ativas. Como dizia um velho amigo, essa gente pensa que pode conquistar o céu andando para trás: “não pode isso, não pode aquilo, etc, etc”.
Já a santidade, conforme a sabedoria divina, é dádiva da graça alcançada pela fé em Cristo; é fruto da vida no Espírito que, longe de nos isentar de responsabilidade, dá sentido e eficácia às nossas ações. Wesley não deixa dúvidas em relação à compreensão que os metodistas tinham acerca desse assunto: “Estamos convencidos... de que não somos capazes de auxiliar a nós mesmos; de que, sem o Espírito de Deus, nada podemos fazer, senão acrescentar pecado a pecado; de que é somente Ele quem opera em nós, pelo seu ilimitado poder, tanto o querer quanto o praticar o bem; sendo-nos tão impossível nutrir um bom pensamento sem a assistência de seu Espírito quanto criar a nós mesmos ou renovar toda a nossa alma em justiça e verdadeira santidade” (Sermão 17: A Circuncisão do Coração, I, 3). Afinal, uma árvore má não pode produzir bons frutos. Por essa razão, Wesley insistia que a santificação não antecede, em hipótese alguma, à justificação, à comunicação do perdão divino. Não podemos ser santos em nós ou por nós mesmos. Somente um coração renovado segundo a imagem de Deus pode gerar obras que conduzem à vida e à comunhão com Deus e com o próximo.
Ao invés de orgulho, junto à autêntica santidade, prevalecem a humildade e a gratidão. A formalidade na observação da lei é substituída pela submissão interior à vontade divina e a prática do amor supera sempre a moralidade superficial do certo e do errado, não se restringindo à mera prática da letra. A santidade segundo o coração de Deus não se limita a evitar o mal. Ao contrário, zelosamente não se cansa de fazer o bem.
No fundo, quem é santo aos próprios olhos tende a ser indulgente consigo e com aqueles que fazem parte de seu grupo, porém age sem misericórdia com todas as pessoas que estão fora de seu círculo mais achegado. Vangloria-se de ser separado e se apressa em reforçar os sinais de sua distinção. Como Jonas está pronto a invocar a justiça divina contra os inimigos, mas não suporta a idéia de que “Deus clemente, e misericordioso, tardio em irar-se e grande em benignidade” (4.2). Não compreende que a real natureza da santidade querida por Deus encontra no amor a sua mais plena realização ou limita o alcance do amor aos próprios pares. Faz-se surdo à pergunta de Jesus: “Se amardes os que vos amam, que recompensa tendes?” (Mt 5.46).
A santidade que o Senhor ama, ao revés, vai ao encontro de todos, especialmente daqueles que mais necessitam. Não se esconde, nem se refugia, da mesma forma como não se pode ocultar a cidade sobre o monte ou a candeia acesa (Mt 5.14-16). A última carta escrita por Wesley (24/02/1791), pouco antes de falecer (02/03/1791), foi dirigida a William Wilberforce, jovem parlamentar inglês empenhado na luta contra a escravidão. Motivado por intensa experiência espiritual, Wilberforce cogitou abandonar sua carreira política para se dedicar inteiramente à vida religiosa. Wesley não se conteve. Deus nos chama a viver a santidade no meio do furacão, se preciso, e não a buscar repouso, alheios às lutas cotidianas. “A menos que Deus não o tenha levantado exatamente para isto, você será vencido pela oposição de homens e demônios. Mas se Deus for com você, quem será contra você. Serão todos eles mais fortes do que Deus? Oh, não se canse de fazer o bem! Prossiga, em nome de Deus e na força de seu poder, até que a escravidão americana (a mais vil já vista debaixo do sol) desapareça... Que Aquele que o guiou desde a sua juventude continue fortalecendo-o nisso e em todas as coisas, é a oração, estimado Senhor, do teu afetuoso servidor. John Wesley” (cf. Letters, VIII, p. 265). Wilberforce não desistiu; até o fim de sua vida, combateu o sistema escravista, declarado ilegal nas colônias inglesas apenas em 1833, um mês após a sua morte.
No Brasil colonial, em que imagens religiosas foram usadas para contrabandear ouro e diamantes, consagrou-se a expressão “santo do pau oco” para qualificar essa pseudo-santidade, carregada de presunção, vaidade, intolerância e indiferença. No Brasil de hoje, como em todos os tempos, o Senhor nos convida a acolher, pela fé, essa santidade cuja dinâmica é o amor; cujo modelo, Jesus Cristo, é comunhão e serviço; cuja essência é a vida do Espírito em nós. Por meio dela, não somos trasladados para além das tensões sociais, mas enviados à sociedade para sermos sal da terra e luz do mundo. Ah, sim, essa santidade não é nem a causa nem a condição da salvação, mas a presença do próprio reino de Deus entre nós!
OBS: Texto publicado na Voz Missionária. Ano 77, Maio-Junho 2007, p. 8-9
Voltar