A unidade não é concordância de mentes, mas de vontades-Tomás de Aquino
(Citado por Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, A Reforma)
Em uma dessas manhãs em que a gente se levanta sem planos, apanhei ao acaso na estante o livro escrito a quatro mãos por um católico e um protestante e que se intitula exatamente A Reforma. Reli o prefácio em que os autores confessam os mútuos conflitos e sofrimentos ao tratar juntos daqueles eternos temas que, ao longo da história, provocaram guerras contínuas e sangrentas entre os discípulos modernos do terno e meigo Jesus Cristo. Mas, apesar de tudo e mantendo firmes suas convicções, escreveram o livro que me parece o melhor testemunho contemporâneo daquilo que Tomás de Aquino disse e que os próprios autores invocaram como epígrafe do livro. Diversidade de mentes é o que torna o mundo menos aborrecido e concordância de vontades livraria o mundo de sofrimentos e carnificinas.
É lugar comum entre os historiadores das idéias afirmar que o século XIX foi o século decisivo da humanidade ocidental quanto ao progresso científico e tecnológico, como também da concretização de teorias políticas modernas que passaram a enfeitar os novos estados-nações que foram surgindo a partir dos seus primeiros anos. Foi o século do progressismo, mais ideológico do que concreto, embora sob o ponto de vista científico e tecnológico não haja o que negar. Contudo, apesar de ainda ser cedo de mais para se fazer um balanço adequado, o século XX, por nós já conjugado no passado, foi um dos mais extraordinários da história, seja para o bem seja para o mal.
Para o bem, jamais a ciência e a tecnologia fizeram tanto pelo conforto do homem, assim como idéias e princípios da política e do direito, tanto locais como internacionais, deram tantos instrumentos de defesa para indivíduos e grupos. Para o mal, basta lembrar o uso destrutivo das novas tecnologias de guerra, duas terríveis guerras mundiais e outras localizadas que ultrapassaram os limites do seu próprio século e se prolongam até hoje. Quanto aos direitos humanos e apesar deles, a globalização vem se encarregando de criar, não só graves problemas de ordem internacional, mas distúrbios sociais localizados principalmente nas grandes cidades e que tendem a se estender pelas periferias. Exemplo patente mostra-nos a França hoje.
Mas, nesse tumultuado século, por andou a religião? Teria desaparecido ou se tornado irrelevante diante de forças de natureza superior à sua tradicional função “reguladora” da sociedade?
De fato, uma grande sombra se abateu sobre o cristianismo durante o século em questão. Esta sombra foi o secularismo, fruto da secularização e do desencantamento a que se referiu Max Weber. Debaixo dessa sombra, floresceram correntes de pensamento religioso que ajudaram a tumultuar as relações políticas internacionais na medida em que disputavam espaço ideológico entre os próprios grupos gerando desconfianças, cisões expurgos internos. Os liberalismos, os conservadorismos e, principalmente, os fundamentalismos, passaram o século girando em torno do ecumenismo. Este girar em torno significou sempre aproximações e distanciamentos conflituosos. Trata-se de uma luta desigual porque fundamentalismo e conservadorismo, para existirem, necessitam sempre de desenhar um inimigo, ao passo que o liberalismo não conta com nada, a não ser com a sua própria imagem.
S e c u l a r i s m o
Secularismo é um termo tipicamente cristão e que, devido aos vários modos de traduzir o grego aiôn, traz sempre certa ambigüidade em sua compreensão. A clássica Vulgata, ao traduzir o termo encontrado no Novo Testamento, usou a palavra século no sentido de mundo, isto é, tudo aquilo que estava fora da comunidade cristã, o paganismo enfim. Diz o texto da Vulgata em II Timóteo 4, 9:
Demas enim me reliquit diligens hoc saeculum (aiôna) et abiit Thessalonicam.[1]
Entre as diferentes formas de traduzir o termo grego, tornou-se clássica esta que aparece na Segunda Carta de Paulo ao seu jovem discípulo Timóteo.
O termo secularismo circulou no pensamento teológico do século passado para significar a crescente tendência no sentido do abandono cada vez maior, em todas as esferas da vida, daquele sentimento de que tudo no mundo se divide entre sagrado e profano. O sagrado, que em todas as “definições”, ou tentativas de definição, significa alguma sorte de poder, de poder misterioso não controlável, mas que os ritos religiosos pretendem controlar, foi perdendo espaço para a confiança na razão e no controle científico da natureza. O homem vai aos poucos saindo do território obscuro do sagrado para adentrar a zona clara do profano.
O século XX iria pagar, no campo da religião, a dívida contraída no século anterior para com o Iluminismo e a era vitoriana. A era vitoriana, ao lado da moral, se caracterizara pelo esforço de intelectuais e cientistas para resolver todos os mistérios, para afastar tudo que fosse inexplicável. O último estertor do mistério, do enigma e de todas as qualidades do absolutamente outro é o clássico livro de Rudolf Otto O Sagrado, publicado em 1917. Último estertor do que se chama sagrado teológico, porém ponto de partida para a vasta gama de sentidos que iria ganhar o conceito de sagrado sociológico. Entenda-se o sagrado sociológico como objeto de todas as abordagens disciplinares fora dos campos da fé e do dogma. Campo privilegiado de estudo do sagrado sociológico é a fenomenologia que, como método filosófico autônomo, permite-nos uma aproximação do fenômeno religioso como experiência religiosa.
Se o secularismo é uma idéia, ou um campo predominante de idéias, a secularização é um processo, um conjunto de atitudes perante as várias esferas da vida em que a dependência do sagrado vai sendo superada pela contínua racionalização que implica em transferir todo poder para o homem e, por conseqüência, o abandono das áreas obscuras do conhecimento.
A secularização atingiu duramente a religião e, em especial, o cristianismo ocidental. Vamos tentar mostrar como e onde isso ocorreu tendo como referência principal o cristianismo protestante. O eixo será a filosofia. Algumas aproximações do catolicismo serão feitas a título de comparação.
O rosto iluminista do protestantismo
Ponto mais ou menos comum entre os estudiosos do cristianismo ocidental é o de que a Igreja Católica Romana firmou suas sólidas bases no sistema aristotélico-tomista, sistema que tem permanecido pelos séculos quase que sem nenhum abalo, a não ser algumas tentativas aqui e ali de ajustamentos nem sempre vingam. Que me lembre, o néotomismo esboçado no começo do século XX e que avançou até meados do mesmo, perdeu sua importância talvez pela contaminação provocada pela proximidade das correntes existencialistas.
Eu me arriscaria a apontar como uma das causas da desconfiança por parte do sistema oficial da Igreja para com a releitura do tomismo a presença marcante de pensadores leigos como Jacques Maritain e Gabriel Marcel, principalmente o primeiro. Fui testemunha de que o eminente professor de filosofia na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, em São Paulo, Leonardo van Acker, nos idos de 50, “proibiu” publicamente a leitura de Jacques Maritain. Maritain já estava sendo avidamente lido e é muito provável que, com a proibição, tenha adquirido mais leitores.
Enquanto o catolicismo romano parece resistir mais às mutações de idéias, o protestantismo se mostra historicamente bastante vulnerável às correntes filosóficas e suas ondas e variações. Normalmente, como eu mesmo tenho feito, aponta-se essa diferença como resultante, não do impacto de idéias propriamente dito, mas do sistema político diferenciado entre as duas tradições. Em poucas palavras, do sistema centralizado de poder no catolicismo e da ausência absoluta dessa centralidade no protestantismo. Contudo, essa explicação resolve parte da questão, pois que há outros pontos talvez mais importantes a serem considerados.
O protestantismo, na sua origem, constituiu-se no sistema mais simplificado de religião ao destruir todos os sistemas de intermediação, tanto individuais como institucionais. Colocou o indivíduo de modo imediato diante de um Deus abscôndito cujo conhecimento só pode ser obtido pela leitura solitária da Escritura. Deus se revela diretamente ao indivíduo pela oração e sob a exclusiva mediania da Bíblia, cuja leitura e interpretação é solitária. Toda responsabilidade de salvação recai sobre os ombros do indivíduo. Também a instituição religiosa, a igreja, embora se firme em credos e confissões de fé, não tem força suficiente para manter a ortodoxia. Além disso, não há uma só igreja; há uma variação enorme de instituições que, apesar de em muitos casos se reunirem em conferências e federações internacionais, não são rigidamente obrigadas a dogmas comuns. Regra geral, a união se faz em torno de símbolos de fé extremamente simples. Em fim, o grande princípio do protestantismo, a liberdade, paga o preço do princípio lógico de quanto maior a extensão, menor a compreensão. O que quero dizer é que liberdade como sinônimo de protestantismo nos impede de compreendê-lo na sua essência. Quase impossível é a sua definição.
Reconheço, portanto, e desde logo, a dificuldade em se dizer o que é o protestantismo. Mas, para efeitos desta palestra, eu diria que protestantismo é um conjunto de formas de ser cristão regido pelo princípio de liberdade. As instituições, ou igrejas, formadas a partir desse princípio, princípio que pressupõe adesão voluntária, estão sujeitas às contingências variadas do mundo e da história.
Eu me arriscaria ainda a dizer que as igrejas ou denominações protestantes são mais comunidades de culto do que de idéias. É a forma do culto, mais tecnicamente da liturgia, que forma a atração simbólica desta ou daquela igreja. Foi dito atrás que o livro de Rudolf Otto marcou o fim do não racional e o começo do racional em religião. Esta afirmativa, vista assim de maneira reducionista, equivaleria a firmar a tese do fim da religião, o que seria uma inverdade. O que de fato aconteceu foi que Otto significou a afirmação do culto como religião enquanto as idéias religiosas eram relegadas ao plano dos debates racionais sobre o sentido do mundo. Essa separação seria responsável, juntamente com o princípio de liberdade, pela riqueza do pensamento teológico protestante que, começando no século XIX, avança por quase todo o século passado. Fiéis e teólogos caminharam por sendas diferentes.
E os intelectuais leigos no protestantismo? O paradoxo é que no catolicismo fortemente clericalizado, a presença de intelectuais teólogos é muito mais freqüente que no protestantismo muito menos clericalizado. O paradoxo neste caso talvez se explique por outro paradoxo: como no catolicismo as regras para o pensar teológico estão sujeitas à disciplina, os intelectuais leigos são mais controlados quanto a possíveis ameaças à ortodoxia, ao passo que no protestantismo, não existindo regras disciplinares para os leigos, os intelectuais são mais temidos e, por precaução, são marginalizados através de mecanismos invisíveis aos quais Rubem Alves chamou de “acordos tácitos silenciosos”[2].
O catolicismo apresenta ao fiel várias instâncias de absolvição de culpa e obtenção da graça. No protestantismo todas as instâncias institucionais foram eliminadas e o indivíduo se apresenta diante de Deus irremediavelmente culpado e dependente exclusivamente de sua própria consciência, isto é, do arrependimento de pecados. Arrependido, morre o homem velho, isto é, o homem na contramão da vida; regenerado pela fé ou pela graça, ou ambas as coisas, nasce o homem novo que, na mão certa, vive segundo as leis de Deus.
Há ainda aqui uma complicação porque os reformadores não chegaram a um acordo quanto ao instrumento eficaz da regeneração para a salvação: para Lutero, por exemplo, o instrumento é a fé; já para Calvino, é a graça soberana de Deus. Teólogos posteriores juntaram a graça e a fé, isto é, a salvação se dá pela graça através da fé. Dito de outro modo, a graça é para todos mas tem que ser apropriada pela fé. A exclusividade da graça para a salvação foi o trilho de Calvino em oposição a Lutero. O calvinismo, contudo, sofreu revisões, tendo como principal resultado a doutrina arminiana que concedeu ao homem certa participação na salvação através do esforço do indivíduo em se manter sob a graça. Essa dose de livre arbítrio causou aos arminianos a acusação de papistas porque trazia certa carga de méritos humanos interpretados como obras.
Esse confronto entre fé e graça pode nos ajudar a entender o divisionismo produzido pela Reforma quando consideramos o protestantismo propriamente dito, isto é, luteranos e calvinistas. Aqueles, mais adeptos da fé e da vida piedosa, praticamente não se dividiram, ao passo que estes, emaranhados nas contradições oferecidas pela doutrina da graça absoluta, acabaram necessitando da elaboração constante de declarações de fé que, em si mesmas, acabaram sendo cismáticas ao levaram a doutrina aos extremos. Ainda, a ala luterana, com sua doutrina dos dois reinos, afastaram o mais possível as confusões com o Estado, ao passo que a ala calvinista nunca chegou a resolver bem esta questão, especialmente por causa das lutas desenvolvidas na Inglaterra contra a igreja oficial.
Esta luta, desenvolvida mais na área política, mas com reflexos intensos na formação das chamadas igrejas livres (free churches ou independents), favoreceu a formação das chamadas denominações que, na América do Norte, se caracterizaram pela independência em relação ao Estado e pela adesão voluntária. Estas denominações ou associações religiosas de caráter voluntário foram, por essa razão, chamadas seitas por Max Weber, embora quase todas tivessem amplitude nacional e mesmo internacional como os episcopais anglicanos, presbiterianos, metodistas e batistas.
Nisso tudo, resta-nos por em relevo duas questões que podem nos ajudar a compreender melhor o confuso universo do protestantismo. A primeira é que, ao menos em seus países de origem, isto é, Europa e América do Norte, a religião, mesmo legalmente separada do Estado, nunca deixou de caminhar muito próxima dele. A segunda é que, sendo o protestantismo uma religião secularizada e mais de consciência do que de rito, logo se envolveu inteiramente com a sociedade através de uma ética comum e formando comunidades de caráter mais espiritual do que geográfico. A noção de paróquia praticamente desapareceu no protestantismo. Quando surge aqui ou ali, é mais tradição do que fato. O fato de o protestantismo ter desenvolvido relações sociais de caráter mais horizontal do que vertical e, como resultado, comunidades mais espirituais do que paroquiais, não foi difícil chegar a um tipo de religião que o sociólogo norte-americano Robert Bella chamou religião civil.
Esse tipo de religião individualista, mais de consciência que de ritos, e profundamente imbricada na história por causa da sua horizontalidade, passou a exigir mais da razão do que da fé. O culto tem mais função de reforço da solidariedade do que de aproximação do sagrado. Por conseqüência está sujeita a revisar constantemente sua visão de mundo e a justar a fé à razão e, por isso, o pensamento entra muitas vezes em conflito com as instituições (igrejas) porque estas, como organismos, tendem a se conservar como estão. No protestantismo o pensamento é livre, mas a igreja não é. O símbolo protestante de liberdade colide sempre consigo mesmo quando se pensa em igreja. Novamente o paradoxo: o protestantismo é livre e ao mesmo tempo não é. Evangelho versus igreja? Quem disse isso em poucas palavras nem foi um protestante, mas um católico chamado Alfred Loisy (1857-1949): “Cristo pregou o reino e veio a Igreja”[3]. Não é necessário dizer que Loisy foi excomungado em 1908.
Fé e razão, questão crucial na Igreja Medieval, volta como verdadeiro fantasma no protestantismo. Seu ascetismo mundano o obriga a envolver-se com o mundo e com suas explicações, quer dizer, com a filosofia e com a ciência. Enquanto a Igreja Católica resiste ao chamado modernismo, o protestantismo se divide em duas vertentes antagônicas: uma ala envolve-se e enfrenta tentando ajustar-se a ele, outra resiste e ergue as muralhas do fundamentalismo. Contudo, não se trata de religião a favor da filosofia ou da ciência, aqui o liberalismo teológico, e nem de religião contra a filosofia ou ciência, aqui o fundamentalismo, mas, antes de tudo, de racionalidades diferentes. Pois que o protestantismo traz em seu cerne a necessidade de tudo explicar. Ninguém como Hegel interpretou o espírito do protestantismo: o racional (o espírito, a fé) é real e o real é racional.
A intenção de Hegel (1770-1831) de harmonizar razão e cristianismo trabalhando o conteúdo “racional” dos Evangelhos já aparece nos seus escritos de juventude, sendo o mais significativo deles o pequeno livro intitulado História de Jesus que, entre outros do mesmo período, só veio a luz em 1907. Hegel, neste livro, com pouco mais de sessenta páginas em sua primeira publicação, representa, ao lado de Kant, uma das mais expressivas simbioses entre teologia e filosofia, especialmente no universo do pensamento protestante. Hegel se propõe a destacar na história de Jesus narrada nos Evangelhos aquilo que se ajusta a uma religião racional: “a figura histórica, concreta e precisa, se desvanece, sendo absorvida plenamente pela configuração ideal do mestre de moral racional”[4]. Em trabalhos posteriores, principalmente na Fenomenologia do Espírito, Hegel iria construir a tese de que Jesus era uma figura do espírito em um momento dado da dialética do absoluto. Parecia pesar bastante a influência de Kant que publicara, em 1793, a Religião nos limites da simples razão, obra que provocou mal-estar, inclusive no rei Frederico Guilherme II da Prússia que chegou a pedir ao filósofo que não mais escrevesse sobre temas teológicos (v. Collinson, Diane, 50 Grandes Filósofos, p. 155).
Eu diria que Hegel é o epicentro do racionalismo protestante porque as correntes anteriores convergem para ele assim como as posteriores partem dele de uma forma ou de outra. Não seria, creio, simplificar demais se resumíssemos assim essas correntes abertas do pensamento protestante: Jesus constitui um momento do real na dialética do espírito (razão). Em linguagem teológica diríamos: Jesus é a realidade histórica (encarnação) de Deus. Embora esta seja a posição em geral atribuída aos chamados “liberais evangélicos”, ela permeia toda a teologia protestante dos séculos XIX e XX. Outras expressões mais metafísicas a respeito de Jesus como o Cristo como, por exemplo, a forte tendência docética que permeia algumas áreas do protestantismo chamado conservador, fica restrita à esfera do culto e da devoção. O Cristo docético[5], por não servir de modelo para a vida, torna-se objeto de culto e não de discipulado ético e moral.
Sob o ponto de vista das normas da história, não se pode dizer que o protestantismo é um produto do Iluminismo, pois que a Reforma aparece antes dele. Contudo, podemos admitir uma estreita relação entre ambos porque o espírito mesmo do protestantismo repousa sobre dois pilares: o conhecimento e a ética. Conhecer a Deus lendo a Bíblia e viver segundo suas leis reveladas em Jesus Cristo. Saber e agir. Em ambos os casos, está implícita a racionalidade, embora em planos diferentes.
Conhecer para agir racionalmente, ajustar-se às novas visões de mundo sugeridas pela filosofia e pela ciência e influir de maneira horizontal na política onde lhe for possível e construir assim uma religião civil, portanto secularizada, eis o rosto iluminista do protestantismo.
Momentos cruciais do Iluminismo protestante
Quando se pensa em Iluminismo, pensa-se na Enciclopédia e em Voltaire, portanto na França do século XVIII. Todavia, o Iluminismo foi um fenômeno da cultura européia estribado no desejo de liberdade, tolerância e progresso humano e social. Entre estes, o conceito de tolerância ganhou expressão em sua crítica à religião porque esta, ao insistir em participar do poder do Estado, transformava-se seguidamente em instrumento de intolerância com todas as conseqüências históricas já sabidas.
O Iluminismo tinha como objetivo a felicidade do gênero humano. O homem e seu produto, isto é, a sociedade, tornava-se o centro de toda ação, objetos da racionalidade em todas as esferas da vida. A Idade da Razão, portanto, procura romper de vez com todas as organizações verticais em favor das horizontais, sob a égide da capacidade humana de, no exercício da liberdade, pensar e agir de acordo com as leis naturais.
Comecemos pelo século XVII dando como assentado o humanismo do protestantismo. Embora seja reconhecida a influência cartesiana no racionalismo que se desenvolve nesse século, não é um católico nem um protestante nem ninguém que tenha assumido o princípio da religião do rei que levanta o princípio de tolerância em nome da razão, mas um judeu chamado Baruch de Espinosa. Perseguido pela sinagoga e pelo governo dos puritanos ortodoxos na Holanda, Espinosa levanta a bandeira da liberdade de pensar contra a interferência do poder religioso na consciência e na razão dos indivíduos, pois que essa interferência intolerante baseava-se na imaginação dos profetas bíblicos supostamente consideradas como revelação. O pensar e agir segundo as leis naturais da razão era pensar e agir de acordo com as leis de Deus. O papel do Estado com respeito à religião seria exclusivamente o de garantir o culto e nada mais[6].
A questão das leis naturais como razões de Deus gerou no protestantismo a célebre corrente deista desenvolvida na Inglaterra Essa corrente filosófico-teológica do Iluminismo inglês origina-se no pensamento de John Locke com seu empirismo gnoseológico e moral e seu cristianismo racional, assim como seu liberalismo em matéria social e política. O deismo ganhou também o nome de teologia natural. O empírico, o racional e o natural são vistos sob o mesmo prisma.
O deísmo como cristianismo racional firma o princípio da religião natural, isto é, de que a religião está implícita na natureza do homem antes mesmo de sua criação. Assim sendo, não há Providência porque Deus não mudará suas próprias razões e, pelo mesmo motivo, não ouvirá orações. As maiores expressões do deísmo foram Mateus Tyndal (1656-1733) com Christianity as old as the creation (1730) em que afirma ser o único objetivo de Cristo reconduzir a religião à sua pureza original, isto é, a religião natural, e Thomas Chubb (1679-1747) que escreveu De vero Christi evangelio defendendo abertamente o deismo ao dizer que Deus não cuida do mundo nem dos homens e que, por essa razão, a oração de nada vale. Vale lembrar também James Toland (1670-1722), em cujo livro Christianity not mysterious (1696) fala pela primeira vez em livre pensadores (freethinkers), tanto em relação a si mesmo como aos seus correligionários. Consta ser Toland, portanto, o criador dessa expressão que circula até hoje em vários sentidos. Parece ter sido ele também o primeiro a usar o termo panteísmo, passando a ser ele mesmo um panteísta. .
O deismo causou imenso estrago na religião, principalmente no protestantismo no seu sentido lato. As igrejas se esvaziaram porque os pregadores eram mais filósofos do que teólogos. Como no protestantismo o rito cede praticamente todo o espaço para o discurso, não é difícil imaginar o que aconteceu.
O Iluminismo foi responsável por toda a produção teológica protestante mais signficiativa nos dois últimos séculos. Geralmente, toda essa produção é colocada sob a categoria de “teologia liberal protestante” que, no seu conjunto, recebe o título de “modernista” ou “modernismo” por parte de conservadores e fundamentalistas. Embora esteja bem presente o risco de sermos reducionistas, o conflito que vem ao longo da história provocando conflitos praticamente insanáveis dentro do protestantismo, gira sempre em torno do racional e do não racional. Seria ainda quase que um simplismo afirmar que há, nele, irreversível desajuste entre o natural e o sobrenatural, entre o explicável e não explicável, entre razão e mistério. A razão choca-se sempre com o milagre, as leis naturais com a Providência. Mesmo os setores fundamentalistas protestantes mais rígidos, isto é, os que defendem a inerrância bíblica, esforçam-se por imprimir lógica em muitas instâncias bíblicas desde que não fira o próprio princípio.
De modo direto, portanto, o Iluminismo se esforça por colocar a religião nos limites do razoável. Começa, naturalmente, pela Bíblia, núcleo absoluto do protestantismo, ao admitir o uso do instrumental da crítica literária no seu estudo. A crítica literária, também chamada quando usada na exegese e na hermenêutica de crítica histórica, crítica das formas ou simplesmente “alta crítica”, submeteu a Bíblia às regras comuns da análise aplicadas aos demais gêneros literários. Isto rompeu com alguns cânones absolutos com relação aos estudos bíblicos, sendo um deles o princípio de que a Bíblia se explica por si mesma. Uma passagem obscura pode ser esclarecida por uma paralela mais clara.
Não seria oportuno avançar aqui todos os problemas criados em torno do conteúdo e do significado bíblico no protestantismo. Contudo, adotado o princípio do liberalismo iluminista, isto é, da “religião razoável”, vamos tentar resumir a jornada do protestantismo nos trilhos dessa tradição até chegarmos a um ensaio a respeito do protestantismo no Brasil.
Vamos tentar resumir o pensamento de três expoentes da teologia liberal protestante nos limites dos propósitos desta palestra. A influência desses filósofos-teólogos percorre quase dois séculos da história do cristianismo e, particularmente, do protestantismo. Todos eles representam, às suas maneiras, grande esforço por afastar a idéia de que o cristianismo se firma sobre o não racional, isto é, que a essência do cristianismo está nos milagres e superstições, coisas estas secundárias na fé cristã.
O primeiro é Friedrich Schleiermacher (1768- 1834), geralmente considerado o mais importante teólogo protestante entre João Calvino e Karl Barth. Ele provocou na teologia uma “revolução copernicana” semelhante à que Kant produziu na filosofia[7]. Desde logo é necessário registrar que Schleiermacher foi criado no pietismo morávio e, daí, a importância da experiência religiosa em seu pensamento. Impressionado com o desprezo com que os “educados” tratavam a religião, particularmente o cristianismo, Schleiermacher publicou seu primeiro livro: Sobre a Religião-Discursos Endereçados aos seus cultos desprezadores (1799).em que critica as concepções que seus cultos amigos faziam da religião. O livro fez grande sucesso e ele continuou escrevendo. Representante maior do romantismo teológico, Schleiermacher publicou os dois livros considerados mais importantes de sua bibliografia: Sobre a Religião, produto de sua juventude romântica, e A Fé Cristã, obra da maturidade.
Não é fácil definir em poucas palavras o peso do pensamento de Schleiermacher. Mas, vou tentar fazê-lo com o apoio daqueles que já o fizeram. Nos Discursos sobre a Religião ele se propõe firmar a religião sobre novos fundamentos. Afirma que aquilo que em geral as pessoas cultas pensam ser a religião basea-se em caracteres externos a ela e, portanto, fundamentam-se em erros. Para Schleiermacher, o único elemento essencial da religião é o sentimento. Os estudiosos deste teólogo, entre eles Paul Tillich, reconhecem que ele não foi feliz ao escolher este termo. Sua ambigüidade produziu equívocos de interpretação ainda não superados.
Tillich chama a atenção para o fato de que “sentimento” em Schleiermacher não deve ser entendido como emoção subjetiva, isto é, no sentido psicológico, mas como “impacto produzido pelo universo sobre nós nas profundezas de nosso ser, capaz de transcender sujeito e objeto”[8] •. Tillich sugere que seria mais feliz o emprego de “intuição” ou “divinação” no sentido de percepção imediata do divino. Sentimento é, portanto, sentimento de dependência incondicional, lembra ainda Tillich. Mas, avança, Tillich, a chamada teologia do sentimento não deixou de fazer estragos, pois que as igrejas se esvaziaram porque as pessoas não aceitavam que a religião fosse só sentimento e não conduta, ação. Mais adiante vou tentar mostrar o quanto isso ainda prejudica as igrejas protestantes, especialmente a compreensão errônea do que postulou Schleiermacher.
Outro importante teólogo do Iluminismo protestante foi Adolf von Harnack (1851-1930) que, nos dois últimos anos do século XIX retomou o tema da essência do cristianismo ao dar um curso na Universidade de Berlim. Harnack aceita o mesmo desafio que Schleiermacher aceitara diante dos mesmos questionamentos a respeito do cristianismo: “o que é o cristianismo? É uma religião? É simplesmente um sistema ético? O que é igreja? É ela necessária?”. Note-se que essas questões eram típicas do cenário filosófico-teológico do protestantismo. Mais tarde, já no cenário do pós-segunda guerra mundial, esses problemas irão provocar respostas extremas como vamos ver mais adiante.
Nesse curso, publicado em 1900, Harnack defende a idéia de que a essência do cristianismo só pode ser captada na história, o que significa dizer que não sabemos o que é cristianismo em si mesmo. Só podemos perceber o cristianismo nos seus momentos vividos na história humana, nas expressões sociais e nas culturas. Harnack já anunciava os pressupostos da futura Escola de História das Religiões conhecida pela defesa do relativismo histórico das religiões. Em suma, ressurgia em Harnack a velha influência kantiana a respeito da relação entre fenômeno e númeno[9] .
Na mesma linha, com algumas variantes, segue Ernst Troeltsch (1851-1930), um filósofo-teólogo mais conhecido entre nós do que Harnack, embora não me conste nenhuma tradução de suas obras em português. A mais próxima é a tradução castelhana de Bedeutung des Protestantismus für die Entstehung der Modernen Welt (El Protestantismo y el mundo moderno, 1951), um curto mas importante livro. Mas, o que importa é que, em 1903, Troeltsch volta à questão da essência do cristianismo e segue em alguns passos a linha de Harnack. Revelando-se um hegeliano, ele afirma que o cristianismo, como toda religião, emerge nos eventos humanos tanto na cultura do espírito como algo concreto e caracterizado como elemento normativo. Portanto, o cristianismo, como toda religião, não é um fenômeno que se esgota em si, mas com seu caráter normativo, influi e condiciona as ações humanas. Troeltsch, assim, adiciona à tese de Harnack a concretude histórica do cristianismo.
Vê-se assim que o protestantismo caminhava, na trilha do Iluminismo, para os extremos do racionalismo beirando cada vez mais os limites da filosofia. Claro que estamos ainda nos referindo ao liberalismo teológico.
O Protestantismo e a teologia da crise
Após a Segunda Guerra Mundial emerge uma teologia revolucionária que envolve principalmente o pensamento protestante, mas que não deixou de atrair, pelas próprias circunstâncias históricas, renomados teólogos católicos como Ives Congar, Hans Küng, Chenu, Daniélou, Hans Hurs Balthasar, Schillebeckx e outros. Não vou me alongar neste ponto importante porque já atinjo os limites desta palestra. Basta-nos firmar os extremos do pensamento protestante europeu neste período.
Neste ponto do racionalismo protestante estão em questão dois pontos fundamentais do cristianismo: esse Deus do cristianismo dogmatizado e instituído ainda existe? Ainda, o que é mesmo igreja, ela ainda existe e tem relevância? Surgem na liça os teólogos da “morte de Deus”, Hamilton e Altizer, Vahanian e outros protestantes, o bispo anglicano Robinson e o católico Robert Adolfs com seu livro Igreja, Túmulo de Deus? (1968). Vahanian, por exemplo, aponta para um futuro pós-cristão e o mártir do nazismo Dietrich Bonhoeffer, luterano, fala em cristianismo sem religião e avança pelo tema da secularização em que o mundo adulto se emancipa da tutela da religião piedosa[10]. Surge também uma escatologia política com Jürgen Moltmann[11]. Rubem Alves publica A Theology of Human Hop[12]e, em 1969, e Tomorrow´s Child. Imagination, Criativity and the Rebirth of Culture[13], em 1972.
Um novo mundo, uma nova cultura, exigia um novo Deus. O Deus da tradição para nada mais servia, assim cantara Nietzsche[14]. Um mundo sem Deus, desencantado e secularizado era o que se via e o que se temia. Frente à Cidade de Deus de Santo Agostinho, contrapunha-se a Cidade do Homem (The Secular City) de Harvey Cox . É exatamente neste cenário, no vazio de Deus, que entram múltiplos deuses. A mesma cultura da pós-modernidade que provocou a morte de Deus, fez com que ele voltasse com múltiplas faces.
As reações do protestatismo ao desencantamento e secularização
O protestantismo nunca conseguiu resistir ao desencantamento e à secularização, pois que estes fenômenos estão na sua índole. Contudo, houve esforços muito significativos por parte dele para firmar-se como religião no sentido pleno, isto é, como vida piedosa e prática cúltica. Em outras palavras, como atitude vital perante o não racional.
Sob o impacto do deismo iluminista, o protestantismo desenvolveu a partir de meados do século XVIII, começando pela Inglaterra, um grande movimento de despertamento religioso que se prolongou até meados do século seguinte nos Estados Unidos. Aliás, o mais correto seria dizer Grandes Despertamentos porque o movimento não foi contínuo, mas desenvolveu-se em “ondas” distribuídas no tempo e no espaço durante praticamente um século. Alguns historiadores entendem que o pietismo alemão tenha contribuído bastante para o movimento. Eu diria que ao menos indiretamente o pietismo alemão forneceu ao movimento o seu elemento básico, isto é, a vasta coleção de hinos largamente usada nos cultos de avivamento (revivals) e que foram traduzidos para o inglês nesse período. No mesmo estilo desses hinos carregados de linguagem mística e cantados geralmente na primeira pessoa do singular, contribuíram também os produzidos já na língua inglesa por Ira Sankey e Charles Wesley.
Os cultos dos Grandes Despertamentos tinham como conteúdo principal a pregação com apelo para a conversão a partir da afirmação de culpa do pecador e da justiça implacável de Deus só satisfeita pelo sacrifício único de Cristo aceito pela fé, os hinos de caráter romântico e patético com letras no mesmo diapasão e o ato de conversão, quase sempre emocional e dramático. O tipo de conversão dos despertamentos foi muito bem estudado e descrito por William James em seu clássico The Varieties of religious experience: a studyin human nature (1902). Seria, então, a conversão, ao menos no estudo dos despertamentos, um capítulo da psicologia do comportamento.
Embora os Despertamentos fossem uma reação religiosa ao iluminismo protestante, o culto percorria a rota da racionalidade em direção ao objetivo bem definido que era a conversão, mesmo que se considere a importância emocional dos hinos e das pregações, estas muitas vezes patéticas como as do célebre avivalista Charles Finney. Além disso, há mais um elemento a ser considerado e talvez mais importante ainda: na atmosfera filosófica de extrema confiança no progresso social pregado pelo evolucionismo de Spencer, a conversão, que significava a morte do homem velho (indivíduo na contramão) e o nascimento do homem novo (indivíduo na mão correta), era passo decisivo na ordenação da nova ordem do capitalismo industrial. Esse período, na linguagem e na expectativa religiosa, caracterizou-se pela crença no pós-milenismo, que significava a construção do reino de Deus na terra. Não é difícil entender que ainda imperava o racionalismo e o culto, como religião, era um dos instrumentos com vistas a esse objetivo.
O primeiro missionário presbiteriano, Ashbel G. Simonton, que chegou ao Brasil em 1859, era egresso de um revival do Grande Despertamento norte-americano ocorrido na cidade de Harrisburgh, Ohio, o que deve ter acontecido de um modo ou de outro com missionários de outras denominações que se instalaram no Brasil. O espírito dos revivals ainda permaneceu por longo tempo nas igrejas brasileiras, inclusive com a vinda de pregadores norte-americanos no período que antecedeu a explosão pentecostal. Mas, o fato é que, como nos ensina a sociologia do conhecimento, um sistema de idéias construído em condições sociais dadas, transplantadas para situações diferentes pode produzir resultado oposto. E assim foi, pois que no Brasil rural sebastianista, a mensagem aceita foi a do pré-milenismo que atirou para o “celeste porvir” a esperança da felicidade a ser gozada no reino de Deus[15].
O envelhecimento do protestantismo no Brasil
As igrejas brasileiras, desconectadas das fontes do pensamento teológico, e alimentadas por uma forma de vida religiosa e de culto que pouco ou nada tinha a ver com a realidade brasileira, manteve em quanto pode as velhas práticas recebidas em suas origens, até que o cansaço as deixasse nas encruzilhadas do caminho. Nem o acervo, e muito menos o uso, do grande cabedal musical que herdou do período de sua implantação, elas estão sendo capazes de resguardar.
Algumas igrejas típicas do velho protestantismo, batistas, presbiterianas, metodistas e congregacionais[16], regra geral de caráter burguês, mantêm a tradição dos cultos formais e tradicionais a duras penas por causa da ameaça constante da música gospel, representante típica do que se pode chamar de indústria cultural religiosa ou, se quisermos ser mais rigorosos, de banalização do sagrado. Bandas e cantores de nível artístico nada inferior aos grandes sucessos da MPB profissionalizam-se e transformam os cultos em espetáculos artísticos. Há uma perda constante de elementos religiosos, elementos já reduzidos como bem observou Peter Berger.
Parece haver, nessa crise do velho protestantismo, uma transição para novas formas de prática religiosa que se situarão no plano intermediário entre ele e o catolicismo. A história nos dirá.
O impacto do pentecostalismo. Pentecostalismo?
A necessidade de recuperar os parcos elementos religiosos do protestantismo vem provocando um tipo de fenômeno religioso que os franceses chamam “iluminismo” (iluminação do Espírito) e os americanos “entusiasmo”. De modo simplificado podemos entender esses termos como designativos para uma espécie de pentecostalismo a meio caminho. Um pentecostalismo contido, “educado” e que atrai mais a média burguesia. Por outro lado, a cultura mágica brasileira, preservada no catolicismo popular cheio de mediações, assim como nos cultos afro e outros, atrai as categorias menos letradas e mais necessitadas para as chamadas igrejas néopentecostais. Néopentecostal, assim como néomodernismo, é tipicamente termo de transição que tenta dizer algo que não se sabe bem o que é. Serão as igrejas néopentecostais no futuro igrejas cristãs ou virão a ser outra religião?
Conclusão
O velho protestantismo no Brasil herdou de seus antepassados o mesmo paradoxo que sempre os caracterizou: ser um modo de viver racionalmente no mundo, uma ética, portanto, e ao mesmo uma religião. Não superou o paradoxo, ou não soube conviver com ele, pois que não impôs sua ética e perdeu seus elementos religiosos para o universo dinâmico e ainda amorfo do pentecostalismo-néopentecostalismo.
Causas de ordem social e cultural estão contribuindo para a posição secundária que o velho protestantismo ocupa hoje no Brasil: empobrecimento social progressivo e retorno expansivo da cultura mágica. A marginalização social, conseqüência do empobrecimento, oferece campo para o pensamento mágico. Estas são causas externas com as quais o protestantismo não sabe conviver. A causa interna foi e é o despreparo intelectual de sua liderança provocada pela formação doméstica, isto é, exclusiva para a sua manutenção e, portanto, alheia aos desafios externos que só uma preparação mais ampla superaria. Esse alheamento tem também contribuído para os sucessivos expurgos de intelectuais a que me referi antes. Como explicar, portanto, o completo distanciamento das igrejas protestantes diante da conjuntura pela qual passa o País?
Outros estudiosos da religião no Brasil têm me achado pessimista quanto ao futuro do protestantismo. Mas, o estudo persistente de sua história bem como a experiência bem vivida em seu seio, não me permitem vê-lo de outra forma. O poder formativo do protestantismo, que no caso do Brasil seria transformador, não se efetivou. Em nossas igrejas o poder formativo e o protesto contra a forma, que para Tillich podem conviver de maneira dialética e positiva[17], até agora só serviram para discórdias improdutivas.
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