No Granbery, via de regra, os alunos recebiam um apelido que abafava o verdadeiro nome e pelo qual era tratado. Eu desisti de ser Elias depois que me apelidaram de Trombone.
Hoje estou relembrando um aluno polaco de nascimento e carioca de adoção, muito simpático, de saúde bastante frágil e completamente careca, que veio para o internato por recomendação do psicólogo da família.
Quando o careca chegou eu me encontrava de plantão na portaria e o encaminhei com a família ao gabinete do Reitor, para as orientações gerais que sempre eram dadas.
Alguns alunos viram-no entrar, pegaram as informações possíveis de quem era ele e logo espalharam a onda:
- Vocês já viram o carioca que está chegando? Cabelo grande que nem mulher ! Sei não se este cara é normal!
Como rastilho de pólvora a onda avançou e o grupo estava pronto para recepção ao carioca cabeludo no refeitório e depois o trote de sempre.
Ele foi apresentado pelo inspetor geral Valdivino, que disse de modo muito enfático:
- Vocês estão recebendo hoje um novo colega, o Ronald, vindo do Rio de Janeiro, que vai precisar muito do apoio e carinho de todos vocês. Ele já esteve com o Reitor , já se matriculou, vai para o dormitório dos médios, é, portanto, a partir de hoje um granberyense, um dos nossos, e nada de aborrecê-lo.
Ronald se levantou e o bochincho começou:
- Vocês não falaram que ele era cabeleira? Ele é careca, não tem nada de cabeludo. O que é isto?
A partir daquele momento Ronald não entenderia mais nada, porque todos começaram a chamá-lo de Cabeludo. Os gritos podiam ser ouvidos de longe: “Ô cabeludo! Hoje vamos cortar seu cabelo!! Güenta lá, flamenguista vira lata.”
Dois meses depois seus pais vieram visitá-lo. Na portaria perguntaram pelo Ronald, mas ninguém o conhecia, até que chegou alguém e perguntado o identificou. É o Ronald carioca, o cabeludo, que está no dormitório dos médios. Gente fina!
O pai logo reagiu. Acho que não, meu filho está completamente careca. Todos riram muito e alguém esclareceu o que se passava aos pais, que também riram em demasia.
O cabeludo chegou e o pai foi logo brincando. “E cabeludo!! Que se passa com você, deixou de ser careca ? Não me contou nada!”
A mãe muito preocupada entrou no papo. “Liga não meu filho, nós amamos muito você e não deve se abater com estas brincadeiras humilhantes. Liga não filhinho. Logo logo isto passa e você vai ficar bem”.
O cabeludo reagiu na hora. “Não mãe, não é ruim não, eu gosto disto e eles gostam muito de mim, são muito carinhosos e se a senhora quer saber, até alguns professores brincando comigo me chamam de cabeludo”. Sabe a Marisa? Aquela que era nossa vizinha no Rio? Outro dia me telefonou e me chamou de cabeludo. Eu gosto mãe, gosto muito.
Cabeludo ficou dois anos no Granbery, fez muitos amigos, era mesmo muito estimado, e em uma visita que fez a Juiz de Fora, anos depois que saiu, visitou o Granbery e teria dito “De todos os remédio que tomei para a calvície o Granbery foi o melhor. Depois que passei por aqui meu problema ficou resolvido, nunca mais a falta de cabelos me problematizou. Interessante! Até hoje quando alguém me chama de careca eu sinto que ele está me puxando o cabelo tão carinhosamente como meus amigos do Granbery quando me chamavam de cabeludo.
Pois é!! É assim mesmo cabeludo. Quando a gente se sente amado a gente muda a cabeça e a cabeça muda o mundo, altera a realidade.
Outro dia vi crianças enfermas carecas no hospital e por sua culpa tive vontade de chamá-las de cabeludas, mas me contive porque senti que eu ainda não tinha o suficiente amor a elas para tanta intimidade.
Apelido é sempre inconveniente e deve ser evitado, mas este funcionou. Ou foi o carinho que contou?
Não sei resolver esta questão, mas o Ronald se sentiu muito bem com este fato e testemunhou isto para muita gente.
Engraçado! Hoje fico pensando... Sabe que após quarenta anos que saí do Granbery, Trombone, que era meu apelido, me soa como manifestação de carinho e me traz muita saudade.
Ainda recentemente, quando ouvi de um antigo amigo este apelido, me emocionei muito e até me senti de volta ao gostoso internato.
Elias Boaventura
Junho de 2005
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