IGREJA METODISTA EM VILA ISABEL
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Rio, 28/5/2010
 

Meus galos: Gigante e Vinagre

Elias Boaventura


 

Em minha infância, na vila onde eu morava, extensão das grandes fazendas que controlavam o derredor, convivi com um enorme galo, que chamávamos de Gigante e que marcou aquela viela por alguns anos.

O galo era de fato uma estimada figura, admirado e amado pela vizinhança cujo horário era por ele controlado. Sem erro ele anunciava com seu cântico, lá pelas cinco horas o romper da aurora e provocava intensa movimentação.

Meu galo ia sempre para a porteira e de lá com invejável liberdade acordava o padeiro e o leiteiro, anunciava as apanhadeiras de café e a movimentação na Vila, liderada pelos carros de bois encarregados da entrega de lenhas para os fogões, café em caroço para o armazém e tantas outras mercadorias.

O galo de fato era uma espécie de relógio vivo, que com suas extravagantes esporas, grandes bonitas e pendentes barbelas e um longo cantar convocava todos ao trabalho sem nenhum atraso.

Recordo-me com saudade da palavra de ordem de meu pai “levanta menino que o galo já cantou e já é hora de acordar para o trabalho, agora mesmo vão passar o leiteiro e o padeiro e eles não gostam de esperar.”

Dono da madrugada, senhor da aurora, meu galo gigante, não errava hora e se postava com seus longos e elegantes chorões como o despertador de todos naquela saudosa viela de montanha, onde era referência para o cotidiano. “Eu acordei antes do Gigante cantar e esperei o padeiro por alguns minutos ainda” dizia o prosa do Manoel filho do Antônio Calado.

Tudo funcionava como uma máquina até o dia que a “Light” chegou com a luz elétrica e colocou um poste com lâmpada, do outro lado da viela, bem defronte da porteira e desorientou por completo o Galo Gigante, que perdeu o ritmo do tempo, a beleza do romper da aurora e o sentido de sua presença na porteira.

Gigante não controlava mais o tempo, cantava fora de hora, desorientava a vizinhança, tornou-se nervoso, confundia os horários, irritava os moradores e não conseguia mais se orientar pela luz do sol e trocava a noite com o dia.

Relembro da visita que nos fez o vizinho Firmiano, filósofo de botequim, que sem muita cerimônia foi expondo suas sábias conclusões ao meu pai, a quem ele carinhosamente chamava Zinho ferreiro.

Ele dizia:
- Zinho, o Gigante ficou louco, parece que virou gente, não sabe mais o que quer, seu cântico que era lindo tornou-se horrível choro e tudo indica que ele não tem mais aurora, nem se encanta com o romper da manhã.

E continuou:
- O pior é que esta doença dele tem se manifestado muito contagiosa. Ainda ontem a Maria dos Reis me falou que depois de muitos anos começou a errar o horário de levantar e acorda nervosa por culpa do Gigante.

Antes que meu pai reagisse e lhe desse qualquer resposta como senhor que tinha a ilusão de ser dono de seu nariz, concluiu:
- Não seria bom que você o recolhesse no galinheiro e deixasse-o preso por algum tempo, até ele acertar a cabeça?

Meu pai não menos pretensioso que Firmiano, concordou e destilou sua filosofia de fundo de quintal:
- Eu concordo com você e a partir de amanhã vou deixar o Gigante preso no galinheiro, embora eu pense que a culpa não é só dele porque o Gigante perdeu a aurora por culpa da Light que pendurou esta lâmpada aí em frente da estrada. Coitado do Gigante, atraído por esta lâmpada vagabunda ele perdeu o sentido da luz do sol, entreteu-se com esta porcaria e perdeu a noção do tempo, mas fazer o que? Assim como nós ele está pagando o preço do danado do progresso.
O Gigante foi recolhido, ninguém mais ouvia seu cântico madrugador, viveu poucos anos, sempre bem alimentado e até bem cuidado, mas sem liberdade e sem aurora, preso naquele escuro galinheiro, em certa manhã foi encontrado morto.

Pois é! Assim é a vida dos homens, que por descuido perdem o encantamento e a esperança do raiar de cada manhã iluminada pela luz sol.

Muitos são aqueles que se entretém com luzes artificiais, perdem o sentido de o verdadeiro viver, comprometem sua liberdade, trocam a luminosidade do ser pelo possuir e se deixam aprisionar por reluzentes ilusões onde acabam sendo vencidos pela morte.
Sessenta anos são passados e ainda hoje gosto de me lembrar de meu galo gigante e pensando nele luto pela vida e me esforço a cada dia por não me deixar entreter com as luzes artificiais do possuir, até porque quem perde a luz do sol, passa também a gerar trevas para si e para os demais.

Ao contrário de meu galo gigante, que era garboso, possuidor de longos chorões, muito amável e brilhante cantador, possuíamos também um galo garnisé que recebeu o nome de Vinagre em função de seu temperamento agressivo.

Vinagre era muito pequeno, extremamente mal humorado, implicante, vivia a provocar arenga com os outros galos e por isso apanhava que nem ele só e passava a maior parte do tempo preso, isolado para poder sobreviver.

Ele não media o tamanho de seu adversário, até hoje tenho a impressão que seu cântico era de provocação porque quase sempre ele só cantava após a iniciativa de outro galo maior.

Para nós crianças ele era exemplo de carinho e bravura, porque sempre que chamado vinha comer milho em nossa mão, pousava em nosso ombro e gostava de estar perto de nós. Também constituía exemplo a ser seguido, porque enfrentava os maiores, que para nós significava os mais velhos e chatos que viviam a nos amolar.

Temperamental, Vinagre atacava sem piedade os porcos, gatos e cachorros, se deixasse matava os pintainhos e parecia mesmo que nenhuma galinha gostava dele.

Em uma manhã de Domingo, quando todos nós fomos à Igreja ele escapou de seu galinheiro e enfrentou uma briga brava com o Gigante barbeludo, que o massacrou de modo a fazer dó. Tanto o Gigante como ele, ficaram ensangüentados, mas ele muito mais e apesar do banho de salmoura que lhe demos, dos cuidados que tivemos um recolhê-lo e embrulha-lo com pano e aquecê-lo, Vinagre não resistiu, morreu e provocou entre nós grande tristeza.

Seu sepultamento foi bonito, feito em terreno distante para não ser mais atacado pelo Gigante e junto dele pusemos milho, imaginando que ele pudesse ter fome, sua cova rasa foi sinalizada com uma cruz de bambu e protegida por pedras.

Tenho saudades do encrenqueiro Vinagre, que em função de seu temperamento viveu preso, não aproveitou a vida e apanhou como nenhum outro, porque para ele implicantes eram os demais.

Ao longo de minha vida tenho encontrado muitas pessoas, semelhantes a meu garnisé Vinagre. Elas estão sempre mal humoradas, implicantes, vivem com a cabeça cheia de inimigos, ciumentas, se consideram vítimas e perseguidas.

Pessoas assim, vivem sempre presas em si mesmas, constróem seu próprio inferno e ninguém presta para elas ou pode ajudá-las.

O pior é que mau humor contagia, se espalha como rastilho de pólvora, contamina o ambiente onde ele se dá e volta a seu emissor como bumerangue, porque afasta carinho e qualquer manifestação de amor.

O pior ainda deste maléfico sentimento é seu poder de isolamento e sua capacidade de paralisação. O mal humorado dificilmente consegue bom convívio, prefere a solidão e por isto se vê prejudicado em sua ação, se entrega e quase sempre se deixa dominar por estranhas enfermidades, que o atacam e o aniquilam.

Meu galo gigante morreu triste porque perdeu o foco, o sentido da vida e deixou-se levar por estranha luminosidade.

Meu garnisé se complicou por entender que ele era o centro do mundo, que tudo girava em torno dele.

Em meus galos vejo duas atitudes deveras perigosas, mas comum entre os humanos.

Elias Boaventura
17/04/2007

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