Vasni de Almeida é metodista e Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Federal do Tocantins, UFT, Campus de Araguaína.
Introdução
Esse artigo é orientado por pesquisas que tenho desenvolvido nos últimos anos sobre o envolvimento dos protestantes metodistas em questões políticas e culturais, entendidas aqui como todas as práticas de intervenção social, sejam elas de cunho ideológico, partidárias, associativas ou assistenciais. A temporalidade privilegiada são as décadas de 1970 e 1980, período em que o País conheceu os anos mais difíceis do Regime Militar (1964-1985). Mas também foram os anos das lutas por democracia, por liberdade de expressão e de abertura política. O protestantismo brasileiro, e o metodismo em particular, ainda que por meio de uma parcela mínima de sua membrezia, não ficou alheio ao contexto político das duas décadas. Suas escolas, seus cursos de teologia, pastores e pastores teceram críticas ao sistema opressor, a carestia, decantaram uma sociedade mais justa, fossem em revistas de catequese ou jornais de circulação interna. Em texto anterior tive a oportunidade de tecer considerações a respeito das manifestações dos metodistas sobre religião e política nesse período, a partir das publicações de revistas de escolas dominicais. Os discursos, as notícias, os informes, revelam indícios de uma fazer religioso e cultural que se que pretendia instaurar.
Neste texto, busco apresentar as vozes das mulheres metodistas sobre as práticas ecumênicas desenvolvidas entre as igrejas cristãs brasileiras nas décadas de 1970 e 1980. As mensagens, publicadas na Revista Voz Missionária (VM), de conteúdos assistenciais e políticos, não se restringiam às mulheres da igreja, mas pretendiam alcançar uma quantidade maior de leitoras. Entendemos as manifestações sobre temas de natureza ecumênica como tentativas de, não apenas informar, mas formar leitores e leitoras. Na visão de mundo que externavam residia, uma forma peculiar de identificação do metodismo como igreja ecumênica. Para se referir aos termos “práticas ecumênicas” nos guiamos pela apropriação que Elizete da Silva fez da leitura de Chartier, a saber: as práticas visam fazer uma identidade social, o que significa simbolicamente, um estatuto e uma posição” ( 2010, p. 16). Assim, ao anunciarem práticas que remetiam ao ecumenismo, as mulheres procuravam identificar o metodismo como uma denominação que não era refratária a ele.
O tenso percurso do ecumenismo entre os metodistas brasileiros
São muitas as compreensões e significados que envolvem a palavra ecumenismo e não gostaríamos de ladear nossa abordagem com uma discussão meramente teológica dos conceitos que dela derivam. Para efeito das considerações sobre o ecumenismo no metodismo brasileiro, basta a definição encontrada por James Farris.
A palavra “ecumênico” é derivada da palavra grega “oikoumene”. O seu sentido original era “o mundo habitado”. O Uso dela na igreja primitiva gradativamente veio a significar a igreja inteira ou o cristianismo como um todo. Atualmente, ecumênico pode ser entendido se sentido amplo como qualquer coisa que se relaciona à tarefa da igreja para levar o evangelho para o mundo (1998, p. 71).
Depois de tecer comentários a respeito das duas categorias que considera inerentes às discussões sobre o ecumenismo, ou seja a de fé (doutrina e vida) e a de ordem ( vida e trabalho), o autor esclarece o que para nós é suficiente para o entendimento das práticas nas quais as mulheres metodistas se envolveram:
Em resumo, o movimento ecumênico representa um esforço dentro do cristianismo para reconhecer e respeitar diferenças em questões de fé e ordem, ao mesmo tempo busca-se um aprendizado mútuo, a cooperação ministerial e modos genuínos e respeitosos para superar diferenças (Idem, p. 72).
A presença da Igreja Metodista em organismos ecumênicos é de longa data. Em 1903, representada por Hugh Clarence Tucker, participou da criação da Aliança Evangélica Brasileira. Em 1920, o mesmo missionário foi um dos organizadores da Comissão Brasileira de Cooperação, que reunia igrejas, missões e organizações evangélicas protestantes. Em 1938, suas lideranças ajudaram a constituir a Confederação Evangélica do Brasil, uma fusão da Comissão Brasileira de Cooperação e do Conselho Evangélico de Educação Religiosa no Brasil. Em 1948, juntamente com os luteranos, filiou-se ao Conselho Mundial de Igrejas -CMI (Reily, 1993, p. 260).
A cultura de diálogo e tolerância demonstrada por algumas de suas principais lideranças, alinhada ao evangelismo social, permitiu, a partir de 1960, uma aproximação mais acentuada com os católicos romanos da Teologia da Libertação. Foi nesse período que se iniciou a circulação, entre algumas igrejas de origem reformada, da idéia de unidade cristã envolvendo o catolicismo. Elizete da Silva informa a adesão dos protestantes ao evangelismo social, na década de 1950, ocorreu sob o impacto da polarização ideológica que tomava conta da agenda política brasileira, o que possibilitou a “construção de novas representações e práticas religiosas e sociais, que buscavam no texto bíblico a sua própria legitimação (2010, p. 16).
Apesar do histórico de participação ecumênica e circulação de discursos religiosos libertários entre as lideranças do metodismo, o tema ecumenismo tinha dificuldade em ser aceito pela maioria dos pastores e membros das igrejas locais. Em artigo publicado anteriormente, discorremos sobre a tradição anti-ecumênica do metodismo brasileiro. Ancorado em discursos de clérigos metodistas publicados no jornal Expositor Cristão e de padres católicos veiculados em jornais laicos de cidade do interior do Estado de São Paulo durante a Primeira República, sinalizamos que o ambiente anti-ecumênico pode ser percebido na própria configuração do campo protestante no Brasil. O protestantismo missionário, inserido Brasil, no século XIX, buscou sua identidade no conflito com o catolicismo romano, então religião hegemônica. Assim, numa situação de conflito, a linguagem utilizada para a constituição da identidade metodista foi a linguagem polêmica, o que gerava situações de intolerância, incompreensões, com os católicos e muitas vezes com outras denominações protestantes (Almeida, 2010).
A linguagem polêmica dos metodistas e também a dos demais protestantes de origem reformada no Brasil, principalmente nas décadas finais do século XIX e início do século XX, estava irrigada pela busca de poder religioso e social. Muitas são as motivações para a formação de polêmicas entre denominações religiosas, sendo as mais comuns as discordâncias no campo das doutrinas, as influências no campo político e o proselitismo. Para que se compreender como muitas vezes os grupos religiosos salientam suas diferenças é necessário ter clareza sobre a maneira pela qual se identificam. Sabemos que uma das formas de um grupo religioso se expor enquanto grupo identitário é justamente o conflito. Nos conflitos de diferentes matizes, as religiões aquilatam seus discursos, demarcam campos de atuação, representam-se enquanto entidades em busca de interação social e de constituição de poder. Contrastar, discordar, protestar são formas de demonstração de poder adquirido ou de aviso da sua presença na competição em busca de prestígio, respeitabilidade e reconhecimento, ainda mais lembrando as dificuldades do protestantismo frente ao predomínio católico. Atendo-se ao debate sobre a importância do reconhecimento para a construção da identidade, na análise encetada sobre a diferenciação entre seita e igreja, Jessé de Souza destacou que o não-reconhecimento não é algo inofensivo e sem conseqüências, pode prejudicar, pode ser uma forma de opressão insidiosa por aprisionar um indivíduo em uma concepção falsa, distorcida e reduzida de si. Desse modo, o reconhecimento não é uma cortesia ou gentileza, mas uma necessidade vital. Uma imagem depreciativa de povos ou comunidades pode tornar-se uma das formas mais potentes e expressivas da opressão destes. Livrar-se de uma identidade depreciativa imposta e destrutiva torna-se fundamental, seja para a vida privada, seja para a vida coletiva (Souza, 1999, p. 51).
Estabelecer acordos para a formação de um ecumenismo da vida e de serviço não chegou a ser um grande problema para a ala defensora do evangelismo social no metodismo. O problema foi vencer as permanências arraigadas na vertente mais conservadora da igreja, aquela na qual o trabalho de conquista de neófitos se sente prejudicada pela presença do catolicismo romano ou mesmo de denominações reformadas identificadas com ele.
Mesmo trilhando um caminho espinhoso, durante a década de 1970, os metodistas ecumênicos, na esteira das práticas políticas de combate ao autoritarismo dos militares, foram estreitando os laços com luteranos, presbiterianos, anglicanos e católicos. Em 1980, foi criado o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), com a participação dos evangélicos citados acima. Esse acontecimento não demoraria muito a ganhar os espaços de decisões da igreja. Em 1982, no Concílio Geral, realizado em Belo Horizonte, MG, a Igreja Metodista foi chamada a decidir se participaria ou não desse organismo. A votação sobre a participação numa instância que contava com a presença da Igreja Católica foi tensa e eivada de conflitos. De um lado, postaram-se os ecumênicos, defendendo a inclusão, de outro, os antiecumênicos. A longa narrativa de Jorge Cândido Pereira Mesquita, então editor-chefe do jornal Expositor Cristão e editor de atas do conclave, é reveladora da tensão que envolvia o tema:
Na noite do dia 22 (de julho), entrou a proposta de ingresso da Igreja Metodista no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (da qual também participam episcopais, católicos, luteranos e cristãos reformados), com pareceres favoráveis do Colégio Episcopal e do Conselho Geral. Desde algum tempo, os metodistas já têm participado do processo conformativo e por mais de uma vez o Expositor Cristão divulgou manifestações do grupo. Lidos os termos da proposta, inscreveram-se 34 oradores para debater a matéria. Após todo o debate, veio a votação favorável, por 45 a 40 votos. Mais tarde viria o pedido de reconsideração da matéria, que não encontrou tempo hábil na agenda e permaneceu “sobre a mesa” para decisão posterior. Cinco dias depois, chegava ao plenário a proposta de integração da Igreja Metodista ao Conselho Latino Americano de Igrejas. Dessa vez a aprovação veio rápida (Expositor Cristão, agosto de 1982, ano 97, n. 15 e 16, p. 10).
A tensão foi grande e, pelas entrelinhas da notícia, percebe-se que não houve esforço da mesa condutora do concílio em apreciar novamente a matéria, decidida por um mínimo de votos. A decisão de ficar “sob a mesa” significava deixar a decisão para o colégio dos bispos, que na sua maioria era favorável a participação no CONIC. Em que pese a articulação dos ecumênicos, a proposta vencedora não foi efetivada enquanto prática da Igreja. O que se verificou, de fato, a partir de então, foi a participação ecumênica de uma parcela minoritária da Igreja. A maioria dos pastores e leigos ignorava as orientações dos bispos para que participassem das atividades ecumênicas planejadas pelo organismo.
Foram várias as tentativas dos não ecumênicos em rever a decisão tomada em 1982. Finalmente, em julho de 2006, por decisão do Concílio Geral, realizado em Vitória, ES, os metodistas deixaram de compor dois dos principais organismos ecumênicos brasileiros: o Centro Ecumênico de Serviços (CESE) e o CONIC, dos quais eram membros há mais vinte anos. A alegação da maioria dos conciliares foi a de que não poderiam mais se alinhar aos movimentos ecumênicos que contassem com a presença da Igreja Católica, pois tal composição estaria prejudicando o crescimento quantitativo da Igreja Metodista. Na compreensão de muitos signatários de tal medida, muitos pastores estavam com dificuldades em explicar aos membros egressos do catolicismo as diferenças entre uma e outra expressão de fé. A decisão, como não poderia deixar de ser, estarreceu os considerados ecumênicos.
Os percursos do metodismo brasileiro, permeados por conflitos com as crenças que lhes eram opostas, quase sempre com o catolicismo romano, sinalizam que no embate com a instituição mais vigorosa residia a possibilidade de reconhecimento dos contrários, de indicar a maneira pela esperava ser reconhecido e de fortalecer a crença dos neófitos conquistados. Nesse confronto, onde também se busca apagar o passado da memória, também residem algumas explicações do frágil ecumenismo oficial.
Mas a memória tende em não se apagar e teima em humanizar o presente (Bosi, 1994, p. 82). As mulheres metodistas, notadamente aquelas identificadas com as lutas de emancipação feminina, insistiam em divulgar práticas que representassem a igreja da qual faziam parte. Por certo porque tinham na memória as práticas das missionárias do século XIX. Mulheres que fundaram escolas, criaram lares para acolhimentos de doentes, idosos e crianças desamparadas. Há que se lembrar que foram as mulheres as responsáveis pela fundação da maioria das escolas metodistas femininas nos séculos XIX e XX , que, nas palavras de Zuleica Mesquita, formariam as mulheres “refinadas” da então burguesia brasileira nascente (1995, p. 99). Entre as missionárias que fundaram escolas estavam Martha Watts, Leonora Smith e Carmen Chacon. O ato de criar e consolidar escolas regulares exige posturas de tolerância e respeito para com os princípios morais e religioso do outro.Isso se aplica também às instituições sociais. As missionárias sabiam que não lidariam com um público estritamente protestante, nem entre os alunos, nem entre os de fora da escola. Para fazer as escolas funcionarem, tiveram que alugar salas, requisitar teatros, prédios públicos. Nesse envolvimento com a educação, fizeram acordos com políticos de outras denominações, conversaram com padres e bispos católicos, cantaram e rezaram juntos. A longa experiência com o ato de educar, cuidar e romper barreiras imposta pela masculinidade, como fez Ana Koppal, na década de 1910, ao chamar a atenção de uma igreja de homens para uma sociedade em transformação (Almeida, 2003), acalentava a memória das mulheres que cuidavam da Revista Voz Missionária.
A revista e a equipe: vozes progressistas
A Revista Voz Missionária (VM) foi criada em 1929, como publicação das Sociedades Metodistas de Mulheres (SMM). A sua criação, em muito, deveu-se ao empenho da missionária Leila Epps. Não foi pensada para ser uma revista de natureza didática e pedagógica, destinada a servir de manual para a catequese. Para isso, as mulheres metodistas utilizavam a revista destinada ao público adulto da igreja. A revista nasceu com a finalidade de publicar textos identificados com a feminilidade metodista no Brasil. Os temas mais recorrentes em suas várias edições envolvem a relação pais e filhos, as atividades femininas na igreja, comportamentos das crianças e adolescentes, os direitos das mulheres, saúde, além de ser espaço de divulgação de poemas, poesias e receitas de alimentos. A distribuição da revista, desde o seu surgimento, ocorre por meio de venda de assinaturas. Uma pessoa que assinava a revista passava a ser considerada uma sócia da mesma. Até a década de 1980, eram comuns as campanhas de conquista de associadas. A sócia, assim, formava uma comunidade de leitoras.
Na divulgação de mensagens que informam e formam comunidades de leitores a composição do quadro de edição e redação é condição básica para a compreensão de visões de mundo, preferências por abordagens e seleções temáticas que se anunciar. No caso da Revista Voz Missionária, de 1972 a 1976, a chefia da redação estava a cargo de Hélerson Bastos Rodrigues. A redatora responsável era Ondina de Godoy Costa Germano, com a diagramação e arte ficando sob a responsabilidade de Laan Mendes de Barros.
Em 1982, o editor passa a ser Jorge Cândido Pereira Mesquita e é criado um Conselho de Redação, composto por Alice Gerab Labaki (Coordenadora), Wanda Moraes de Almeida, Wilma Joan Roberts, Zuleica de Castro Coimbra Mesquita. Os serviços de arte e diagramação continuou com Laan Mendes de Barros, sendo auxiliado agora por Marta Cerqueira Leite.
Em 1983, 1984, houve mudanças. O editor passou a ser Laan Mendes de Barros e o Conselho de Redação sofre uma pequena mudança, ficando assim constituído: Alice Gerab Labaki (Coordenadora), Wanda Moraes de Almeida, Wilma Joan Roberts, Zuleica de Castro Coimbra, Sônia Ely Brum Claro Ortigoza. A arte e diagramação ficou sob a responsabilidade de Marta Cerqueira Leite. Pouca alteração ocorreu em 1985. O editor permaneceu o mesmo, bem como a pessoa responsável pela arte e diagramação. O Conselho de Redação contava com Alice Gerab Labaki (Coordenadora), Zuleica de Castro Coimbra Mesquita e Amélia Tavares Correia Neves. No final desse ano, essa última passou a ser a única redatora.
A equipe de redação era composta por mulheres e homens que atuaram em setores de forte influência editorial, educacional e eclesial no metodismo brasileiro. Muitas redatoras eram representantes das federações metodistas de mulheres e nomes certos para ocupar as mais diferentes comissões compostas pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista. Jorge Cândido Pereira Mesquita foi, durante muitos anos, o Secretário Executivo do Conselho Geral das Instituições Metodistas de Ensino (Cogeime), sendo convocado, não pouca vezes, para ocupar a Secretaria dos Concílios Gerais. Laan Mendes de Barros ficou bastante conhecido por criações de ilustrações alternativas sobre a cultura brasileira nos diversos espaços de publicação da igreja. Eram e ainda são lideranças conhecidas por suas posturas progressistas, principalmente no que se refere aos aspectos políticos e sociais, dentro e fora da igreja. Aqui vale a pena destacar a definição a que chegou Elizete da Silva para o uso do termo progressita no protestantismo brasileiro e que em muito se aproxima do que expressamos nesse texto:
Um protestante progressita seria aquele com uma visão aberta, não necessariamente modernista em termos teológicos, que admite novas ideias e novas perspectivas na interpretação de doutrinas e nas práticas religiosas, que possibilitam um olhar e às vezes um engajamento na sociedade circundante (2010, p.35).
A organização da revista - suas colunas, os artigos aceitos, as ilustrações dos temas, o editorial, revelam posturas religiosas e escolhas teológicas progressitas. As notas, as notícias, os posicionamentos sobre as práticas ecumênicas de mulheres metodistas compõem um universo de um dado jeito de ler a realidade, de um jeito de se fazer compreender, tanto dos autores quanto dos leitores.
Anunciando práticas ecumênicas solidárias
No primeiro trimestre de 1972, foi publicada, na coluna “Informação conduz a inspiração”, uma carta do Departamento de Obras Sociais das Filhas de Maria da Catedral de Pouso Alegre, MG. Nela, as católicas solicitam informações acerca das atividades religiosas das mulheres metodistas nas prisões, bem como o envio de um estatuto que orientasse tal atividade (VM), 1º trimestre de 1972, p. 25). Assistência religiosa e social ganhava as páginas da revista e provocava o diálogo com as mulheres católicas.
Na mesma coluna noticia-se a criação do Lar evangélico do Índio, de natureza interdenominacional, no Rio de Janeiro, cuja gestão se daria de forma interdenominacional. A casa funcionaria como abrigo aos indígenas que estavam em tratamento de saúde nessa cidade, ou mesmo a procura de empregos (Idem, p. 29).
No quarto trimestre de 1983, a equipe de redação publicou a litania utilizada durante a I Semana Ecumênica do Menor, realizada em São Paulo, em 1981. Sob o título “Oração Ecumênica do Menor, o seu conteúdo revela preocupação com as condições sociais das crianças desvalidas, compreendidas na oração como as preferenciais no “Reino de Deus”. Os participantes do evento confessam na litania o desrespeito para com as crianças e lamentam os “milhões que sofrem famintos, sem afeto, sem moradia e injustamente empobrecidos”. O texto é finalizado com a assunção do compromisso de se construir “nossa libertação, para um mundo novo, para um tempo de paz” (VM, 4º trimestre de 1983, p. 03). Aqui, o ecumenismo adquire tonalidade contestatória, tal estava acontecendo com as concepções de evangelização, louvor, anúncio, compromisso cristão, entre outras que veiculavam nas publicações metodistas na década de 1980.
No quarto trimestre de 1984, a revista publicou a apresentação que D. Hélder Câmara, bispo católico expoente da Teologia da Libertação do catolicismo brasileiro, fez do canto que “Pe. Jocy” compôs sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Destacou-se a firmeza com que o bispo defendia as Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s). Para ele, tais comunidades “serão invencíveis na medida em que se unirem, de maneira corajosa mas pacífica, sem sombra de ódio, mas com firme decisão de defender direitos que, antes de estarem escritos pelos homens, no papel, estão inscritos, por Deus, em nossa carne, em nosso sangue, em nossa consciência, em nosso coração”. Todo o canto foi publicado. No que se refere às questões religiosas, a poesia ficou assim constituída:
Todo homem tem direito
De pensar como quiser,
De seguir sua consciência
Em tudo, haja o que houver
E, sendo assim, tem direito
de mudar de crença ou fé
e tem plena liberdade
de confessar o que é
Praticando e ensinando
a sua religião
e, sozinho ou com outros crentes,
prestar culto e adoração
quer dentro de sua casa
ou dentro de sua igreja,
pelas ruas, pelas praças,
onde bem quer e deseja (VM, 4º trimestre de 1984, p. 14).
Na edição do 1º trimestre de 1985, a revista trouxe uma entrevista com “Dona Conceição”, uma metodista que se declarava ex-católica e que tinha como prática religiosa e social a visita aos presídios, hospitais e familiares com algum tipo de necessidade. Nessas visitas, indica a entrevista, entregava folhetos, bíblias, fazia orações e conversava. Indagada sobre o que compreendia como ecumenismo, respondeu:
Ah! Eu acho que o amor está na união. Nós temos que amar a todos. Ser unidos neste mundo porque Jesus não mandou nós nos separarmos de um e outro, não é? Numa visita eu encontrei uma senhora católica, que parecia evangélica, mas não era. Então a gente dá as mãos e vai trabalhando também (Idem, p. 21).
Vai se configurando na fala da entrevistada não o ecumenismo institucional, mas o real, aquele que brota das práticas evangélicas cotidianas, nos convívios ancorados na tolerância. Não é um ecumenismo que se ressente das limitações doutrinárias e denominacionais, mas o da convivência, do companheirismo na lida religiosa diária.
No segundo trimestre de 1985, sob o título “O ideal é ser sempre jovem?”, Alice Gerab Labaki, uma das mais ativas colaboradoras da revista chama a atenção para a necessidade do respeito para com a pessoa idosa. Para argumentar suas ponderações, utilizou um fragmento do livro “Mil razões para servir”, de autoria do bispo católico D. Helder Câmara, o que demonstra a positividade das mulheres da revista quanto a abertura para as vozes ecumênicas (VM, 2º trimestre de 1985, p. 36-39). O diálogo com representantes do catolicismo da ala progressista encontrava guarida nas páginas do principal veículo de comunicação das mulheres metodistas.
No último trimestre de 1985, na coluna “Repartindo experiências”, foi publicada uma carta da associada Amélia Colpaert Machado, da Igreja Metodista de Londrina, PR. A colaboradora narra que sentiu a necessidade de prestar serviços religiosos junto aos doentes da Santa Casa de Misericórdia da cidade e, para tanto, comunicou o pastor de sua igreja e entrou em contato com o provedor da instituição de saúde. As visitas foram franqueadas e realizadas juntamente com “uma senhora da Igreja Católica”. A narradora informa que foi interpelada por uma “das irmãs” que gerenciavam o hospital por estar realizando a leitura da Bíblia para um internado. Em resposta, esclareceu que tinha a autorização para tal ação, no que a Madre Superiora indagou se nessa prática não estaria sendo tecido críticas à Virgem Maria. De pronto a metodista respondeu: “Como minha irmã, se ela é a mãe do meu Salvador e do seu Salvador”. Diante da resposta que denotava respeito e tolerância, a visitadora foi autorizada a continuar suas atividades de leitura junto aos enfermos (VM, 4º trimestre de 1985, p. 21). São práticas ecumênicas que perpassavam pela religiosidade das mulheres e que a revista fazia questão de publicar.
Divulgando ações ecumênicas de natureza libertária
No segundo trimestre de 1974, abriu-se espaço para a publicação de notícias referentes ao IV Congresso Nacional das Sociedades Auxiliadoras de Senhoras da Igreja Presbiteriana Independente, IPI (VM, 2º trimestre de 1974, p. 20). As atividades religiosas de denominações protestantes encontravam acolhida nas páginas da revista.
Dois anos depois, a revista publica informações a respeito da festa de confraternização de aniversário da Sociedade Metodista de Senhoras de Santo Ângelo, RS, ressaltando-se que seis igrejas “evangélicas” se fizeram representar nas festividades. (VM, 1º Trimestre de 1976, p. 21). As práticas ecumênicas se revelam nas festas.
Em 1983, um artigo de Amélia Tavares explica o surgimento do ecumenismo do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), apontando como seu embrião a Conferência Mundial de Missões, realizada em Edimburgo, em 1910. O texto procurou deixar claro que o referido conselho, estruturado em 1938, em muito foi motivado pelos serviços de capelania exercidos por agentes de denominações cristãs evangélicas junto aos prisioneiros e refugiados de guerras (VM, 4º trimestre de 1983, p. 11).
No primeiro trimestre de 1985, foi publicado um amplo texto explicando os procedimentos para a realização do “Dia Mundial de Oração”, uma atividade anual que conclamava as mulheres cristãs de diferentes denominações a dedicarem a um determinado tema a centralidade de suas preces. Até a atualidade é uma atividade organizada pelas mulheres de vários continentes e conta com o apoio de organizações ecumênicas nacionais e internacionais (Idem, p. 16-17).
Nesse sentido, a revista teve o cuidado também de veicular a notícia sobre a celebração dessa atividade anual, ocorrido na Igreja Metodista de São Carlos, no interior paulista, em 1º de março de 1985. O evento, que contou com a participação de cinco igrejas evangélicas da cidade e foi desenvolvido em volta do seguinte tema: “Paz na Terra, liberdade dos povos e pela vida no mundo” (VM, 3º trimestre de 1985, p. 27). Os temas libertários do cristianismo brasileiro da década de 1980 alicerçavam as práticas ecumênicas das mulheres.
No quarto trimestre de 1985, foi publicado um artigo do reverendo Sérgio Marcus Pinto Lopes, um dos mais respeitados progressita do metodismo brasileiro, versando sobre o Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), organizado em 1982. O reverendo descreveu que, mesmo com a contrariedade de muitas denominações e com as difamações, o organismo tinha crescido e se tornado referência para o ecumenismo na América Latina. Assim, a revista demonstrava apreço a um dos seus mais combatentes apoiadores e ao ecumenismo que defendia (Idem, p. 31). Nas letras da revista as práticas ecumênicas a busca pela consolidação do ecumenismo encontravam eco. Assim pensavam e agiam as mulheres redatoras.
As páginas da revista não apenas divulgavam eventos de natureza ecumênica, elas serviam de espaço de defesa do ecumenismo do qual o metodismo compartilhava com outras igrejas cristãs. Na edição de janeiro, fevereiro e março de 1985, na coluna “Dialogando”, espaço em que as redatoras respondiam as indagações enviadas pelas leitoras da revista, a associada Elda Costa Barcellos, do Rio de Janeiro, demonstrou descontentamento para com a publicação, na edição do primeiro trimestre de 1984, de um artigo de Frei Félix Neefjes, no qual se enfatizava o papel da mulher no catolicismo e fazia-se defesa do ecumenismo. Ao descontentamento da leitora a equipe de redação respondeu argumentando que o ecumenismo estava na raiz do movimento metodista na Inglaterra do século XVIII. Citaram João Wesley, o fundador do metodismo e sua famosa “Carta a um católico romano”, bem como capítulos das epístolas paulinas, tudo para defender a unidade do cristianismo. Citaram ainda anedotas publicadas em edições anteriores da revista, nas quais artimanhas teológicas foram evocadas para afirmar que todos os crentes são salvos pela graça, inclusive os católicos. Finalmente alertaram a leitora para o fato de que, desde 1982, a Igreja Metodista passou a compor o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), juntamente com a Igreja Católica Apostólica Romana (VM, 1º trimestre de 1985, p. 02). As mulheres progressistas do metodismo brasileiro defendiam o ecumenismo e suas práticas, a ver pela enfática resposta dada a leitora associada.
Considerações finais
As notas, os artigos, as respostas às leitoras da revista apontam para práticas de natureza ecumênica. Formam um discurso que pretende identificar as mulheres metodistas como abertas ao diálogo, ao respeito com as diferenças, na trilha de um ecumenismo tal como o definido por James Farris. Todavia, uma indagação necessita ser levantada: os textos sobre práticas ecumênicas na Revista Voz Missionária garantiram a aceitabilidade do ecumenismo pela leitoras da revista? Eles seriam constituintes de uma nova mentalidade religiosa? Certamente que não. Há que se ressaltar que nem sempre posturas anunciadas se traduzem na garantia da multiplicação dos discursos libertários e ecumênicos. Em se tratando de textos escritos, há sempre as apropriações, as adesões, as rejeições, as adequações. O mundo da fé passa por mediações e essas nem sempre são progressistas. Deve-se lembrar do sentimento anti-ecumênico arraigado no metodismo brasileiro pela religiosidade da polêmica.
Os textos de natureza ecumênica da revista revelam, todavia, tentativas de educar, de convencer e de converter. Indicam ainda a legitimidade das autorias, pois foram filtrados por pessoas que granjearam respeito tanto no metodismo quanto nas demais denominações. E ainda mais, foram autorizados pelas lideranças da igreja para ser a expressão de sua vontade e de sua visão sobre a sociedade. Os textos sobre ecumenismo estavam afinados com uma concepção de igreja que se queria instaurar e com a qual queriam se identificados. Assim pensavam as lideranças do metodismo, caso contrário a escrita ecumênica seria interditada. Para além da chancela dos bispos, os textos da revista eram legitimados pela circularidade dos temas nos demais espaços de comunicações da igreja em espaços de comunicação dos demais grupos sociais.
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