Susanna Annesley nasceu no dia 20 de janeiro de 1669, em Londres. Seu último suspiro, em 30 de julho de 1742, foi imediatamente seguido por um salmo de louvor a Deus que o filho John e suas irmãs entoaram em cumprimento ao pedido que fizera pouco antes de perder a fala. Ela havia vivido 73 anos, casara-se com Samuel Wesley com o qual tivera 19 filhos, embora apenas dez sobrevivessem, e seria sempre lembrada pela influência que exerceu sobre os filhos e, indiretamente, sobre o próprio movimento metodista. Em seu Diário, John Wesley a homenageia colocando-a, “em sua medida e grau”, como “pregadora da justiça”, ao lado de seu avô, pai, esposo e dos três filhos, ainda que Susanna jamais tivesse recebido, como era o costume naquela época, a ordenação para essa tarefa.
Aliás, os séculos 17 e 18 não foram nada fáceis para as mulheres e os pobres, como, de resto, não é ainda hoje. Submetida aos pais ou aos maridos, a vida das mulheres transcorria inteiramente dentro do âmbito doméstico. O acesso à educação formal era exceção, e não a regra. Fora das Universidades e das esferas de poder, tanto político quanto religioso, quase nunca a voz das mulheres era ouvida. Certamente, foi por essa razão que Susanna estabeleceu como norma não ensinar nenhuma tarefa ocupacional às filhas até soubessem ler suficientemente bem. Sem dúvida, essa era uma das condições indispensáveis para que as mulheres alcançassem atenção e respeito. A própria Susanna mostrou-se bastante firme em suas convicções, defendendo o seu ponto de vista sem hesitação sempre que discordava das opiniões de seu esposo. Escrevendo ao filho John, confessou-lhe: “É uma infelicidade quase peculiar à nossa família que teu pai e eu raramente pensamos do mesmo modo”.
Tal determinação tem antecedentes em seus antepassados, sendo forjada numa era marcada pela intolerância. A Inglaterra achava-se, então, profundamente dividida em matéria religiosa e política. No século 16, Henrique VIII rompera com o catolicismo e instituíra uma Igreja nacional (1534), cujos contornos seriam definidos, somente mais tarde, com sua filha Elisabeth I (1558-1603), depois de avanços e retrocessos. Muitos não aceitaram as soluções encontradas e continuaram a defender mudanças radicais. Queriam abolir práticas remanescentes do antigo regime eclesiástico, como a existência de bispos, e reivindicavam a purificação da Igreja da Inglaterra. A sucessão dos fatos políticos colocou em confronto a monarquia e o parlamento dominado pelos puritanos, como ficaram conhecidos os que defendiam tais idéias. Num primeiro momento, os puritanos, liderados por Oliver Cromwell, ascendem ao poder, decapitam o rei Charles I e instituem uma república, impondo sobre a sociedade severas leis religiosas (1649). Divisões internas associadas ao fanatismo religioso, problemas de liderança e o desgaste político acabam conduzindo à restauração da monarquia a pedido dos próprios parlamentares (1660). O culto da Igreja Oficial é novamente imposto, pela promulgação de novo Ato de Uniformidade (1662), e os clérigos descontentes são depostos de suas congregações. Apenas após a chamada “Revolução Gloriosa” (1688), que destituiu o rei James II, por causa de suas inclinações para o catolicismo, e elevou William de Orange e Mary ao trono inglês, criaram-se as condições para aceitação do Ato de Tolerância (1689), que admitiu, sob certas limitações, a liberdade de culto para os denominados não conformistas. Vale lembrar que católicos romanos e unitaristas (que negam a fé na Trindade) foram excluídos desse ato, conquistando plena liberdade na Inglaterra somente no ano de 1829.
Entre os insatisfeitos, que recusaram o Ato de Uniformidade e sofreram as sanções legais, estão os avós de Wesley, tanto pela linha paterna quanto materna. Em particular, ressaltamos o Rev. Samuel Annesley, pai de Susanna, a caçula entre 25 irmãos e irmãs. Afastado de suas funções pastorais, por causa de sua posição puritana, o Rev. Annesley transformou o seu lar numa espécie de refúgio para os não conformistas. Os estudantes da Academia dos Dissidentes, entre os quais o futuro esposo de Susanna, sentiam prazer em visitar a sua casa para conversações teológicas. Depois do Ato de Tolerância, o pai de Susanna obtém licença para pregar na “casa de reuniões” de Little Saint Helen’s e se transformou numa espécie de patriarca dos dissidentes até sua morte, em 1696. John Wesley não escondeu a sua admiração pelo avô paterno, ao incluir um de seus sermões na Biblioteca Cristã, uma coleção em que procurou reunir os melhores textos de teologia publicados em inglês. O fragmento do sermão, citado a seguir, oferece um fiel retrato da piedade da família e impressiona pela similaridade com as ênfases que o neto John procuraria imprimir entre o povo chamado metodista:
“Lembrem essas duas palavras, mesmo que vocês esqueçam todo o resto do Sermão, isto é, ‘CRISTO e Santidade, Santidade e CRISTO’: entrelacem-nas, de todas as maneiras, em todas as suas conversações... É o cristianismo sério que eu exijo como o único modo para aperfeiçoar qualquer condição; é o cristianismo, o claro cristianismo, que sozinho pode fazê-lo; não é moralidade sem fé, que nada é senão refinado paganismo; não é a fé sem moralidade, que nada é senão evidente hipocrisia; há de ser uma fé divina, formada pelo Espírito Santo, na qual Deus e o ser humano cooperam na realização; tal é a fé que atua pelo amor, tanto a Deus como ao ser humano; uma fé santa, repleta de boas obras” (In: COLLINS, Kenneth J. John Wesley: A Theological Journey. Nashville: Abingdon Press, 2003, p. 14).
A partir desse testemunho, não é difícil perceber como foi se constituindo a piedade da jovem Susanna. Também não é impossível imaginar como o clima de confrontação e intransigência, vivido no tempo de sua adolescência e mesmo depois, contribuiu para gerar uma franca mentalidade de tolerância e respeito, que reconhece que a ação de Deus transcende os estreitos limites da própria experiência religiosa. Quem sabe se não foi por esse motivo que Susanna decidiu, como também o fez Samuel Wesley, deixar a Igreja de seu pai para vincular-se à Igreja Anglicana sem, contudo, abandonar as preciosas lições que havia aprendido. Não apenas o lar formado por ambos, mas o próprio movimento metodista teria feições bem diferentes não fosse essa oportuna decisão.
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