A OPÇÃO PELOS POBRES (1)
Julio de Santa Ana
A leitura dos Evangelhos, especialmente a dos Sinóticos, dá evidências claras que, através de seu ministério, Jesus optou pelos pobres. Não se tratou de uma opção "preferencial". Simplesmente colocou-se a seu lado. Só assim se explica suas duras palavras aos ricos (cf Lc 6.24-26), suas exigências radicais aos mesmos (Lc 18.18-34) e sua ironia contundente com relação à dificuldade total que tem um rico para entrar no Reino de Deus ("é mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" — Lc 18.25). Só se pela graça de Deus o coração e o comportamento do rico mudassem, ou — dito de outro modo — se o rico deixasse de ser rico, poderia salvar-se (Lc 18.27). É indiscutível, portanto, a opção de Jesus pelos pobres. Por isso, sua palavra para eles é uma boa notícia. Para os ricos, ao contrário, é uma exigência severa para se arrependerem e mudarem de vida ("Vende tudo o que tens, reparte o dinheiro entre os pobres, terás tesouro no céu; depois vem e segue-me"). Os pobres, entretanto, como pobres recebem o Reino (Lc 6.20). Por esta razão podem sentir-se felizes (makarios = bem-aventurados).
Jesus coloca a necessidade da conversão tanto para o pobre como para o rico. Se a este, como indicamos acima, exige-lhe o arrependimento como ponto de partida para começar uma nova vida, na qual a generosidade e a capacidade de compartilhar predominam, Jesus chama o pobre a uma conversão diferente. Ela consiste por um lado, em superar o medo que tanto caracteriza os pobres frente a seus opressores. É um chamado a ter fé, em primeiro lugar. Com efeito, Jesus opõe a fé ao medo: os discípulos "são homens de pequena fé", porque têm medo (Mt 8.23-27; Mt 14.27-33). Quando os pobres superam o medo começam a manifestar, através de sua prática histórica, os sinais que marcam a proximidade do Reino de Deus e sua justiça. Ter fé é olhar para a frente, possuir o valor para enfrentar situações cruciais e decisivas.
E, por outro lado, esse chamado de conversão ao pobre é, em segundo lugar, para que obedeçam à vontade de Deus, que procura fazer prevalecer o amor e a justiça. Ou seja, o fato de ser pobre não é sinônimo de uma vida reta diante dos olhos de Deus. Também o pobre é chamado a "nascer de novo". Não obstante, porque sofre injustiça, opressão e violência por parte dos ricos e poderosos. Deus lhe dá o privilégio de ser herdeiro de seu Reino de justiça, de liberdade e de paz.
Esta opção pelos pobres também é clara em todos os escritos do Novo Testamento, alcançando uma intensidade muito grande na carta de Tiago, segundo a qual na comunidade cristã não devem existir diferenças de tratamento entre ricos e pobres. A opção de Deus por estes é patente. "Olhem irmãos, acaso não escolheu Deus aos pobres deste mundo para fazê-los ricos na fé? Não será para eles o Reino que prometeu àqueles que o amam?" (Tg 2.5). Por isso a Igreja aceitável aos olhos de Deus é a que, sendo pobre, tem uma riqueza espiritual que se manifesta naqueles difíceis momentos de prova, quando apesar de todos os apertos que deve enfrentar, continua sendo fiel ao Senhor (Ap 2.8-11).
A opção fundamental da pastoral, do povo peregrino que caminha para o Reino pelos caminhos (trilhas) do mundo, só chega a ser concreta quando é acompanhada pela opção em favor dos pobres. Com efeito, são estes que vêem sua vida mais diminuída, deteriorada, desqualificada. Quando o produto bruto latino-americano baixa, não são os ricos que sofrem, mas os pobres. A possibilidade de vida para eles vai se dissipando. Daí, que a Igreja tenha que optar por eles. Essa foi a opção de Jesus e das comunidades neotestamentárias. Essa é a opção do povo da fé. Isto só será reconhecido na Igreja, quando esta, por sua vez, acreditar na presença sacramental, misteriosa, de Jesus Cristo entre os deserdados e oprimidos.
Infelizmente, salvo exceções, a história da Igreja há mais de quinze séculos, dá evidência de um cisma entre a instituição eclesiástica e os pobres. Isso levou Benoit Dumas a indicar uma dupla alienação da Igreja. "Confessamos a unidade da Igreja, mas uma unidade alienada enquanto esses dois rostos não tendam a formar o único rosto da única Esposa. De um lado, o Corpo instituído; do outro, as massas sofredoras com as quais Cristo tem se identificado. Se a coincidência não se realiza, Cristo se encontra dividido em suas duas maneiras de dar-se ao mundo, e a Igreja alienada, no sentido forte de ser alienada de si mesma, de estar fora de si mesma, de seu ser profundo" (2).
Nesta perspectiva, o dinamismo da Igreja que constitui sua unidade, encontrando-se e desvelando a si mesma, é o seguinte: a Igreja se desaliena, entra em si mesma, reduz a diferença entre seus dois rostos. Pois una como é, deve apresentar um único rosto. Na medida em que o dito encontro não tenha se realizado a Igreja não está totalmente na Igreja:
Enquanto os pobres que esperam sua libertação não saibam nomear a Jesus Cristo e nem reconhecê-lo em seu corpo visível comprometido junto a eles: enquanto os que esperam em Jesus Cristo e o nomeiam não sabem encontrá-lo, nomeá-lo e esperá-lo na libertação dos pobres.
O mesmo sucede com o sacrifício. A Igreja o oferece. As multidões deserdadas o vivem. O sacrifício está alienado; não é o de Jesus — perfeito e consumado de uma vez por todas — mas o que a Igreja celebra:
Enquanto os pobres que o vivem não possam ver nele, nem nomear ele como fonte de sua vida e de sua libertação; enquanto a Igreja que o celebra não encontra nele a força necessária para libertar a Jesus da paixão que sofre nas massas oprimidas, o sacrifício está alienado (3).
Uma Igreja que opta pelos pobres, visando que Jesus Cristo tome forma nela é a que se anula a si mesma e se esvazia (kénosis) na luta dos pobres. Esta luta, hoje na América Latina, atinge indícios dramáticos: é o que se percebe no que ocorre aos indígenas guatemaltecos, submetidos a uma violência genocida. Ou o que está acontecendo com os habitantes do nordeste brasileiro, cuja miséria crescente é explicada pela seca quase permanente: é verdade que não chove, mas sua pobreza convém aos grandes senhores da região. É também o que sucede a todos os pobres da América Latina: a tremenda dívida externa contraída pelos governos da região pesa muito mais sobre os humildes e empobrecidos do que sobre os abastados e poderosos. Optar pelos pobres significa denunciar esta situação e seus responsáveis, por um lado, enquanto que, por outro lado, leva a participar de cheio, esvaziando-se do poder como igreja que conviveu por séculos com os poderes dominantes da América Latina, na luta dos pobres.
A oportunidade que Deus oferece às Igrejas da América Latina em nosso tempo é muito evidente. É o kairós (tempo de Deus) apropriado para romper com o velho conformismo. É um momento adequado para a renovação pastoral. Com efeito, como foi mencionado previamente, os pobres irrompem na história latino-americana com um novo dinamismo. Apesar do fato dos poderosos ainda estarem sentados em tronos transnacionais, enviando forças militares que invadem pequenos estados e ameaçam a soberania e a paz daqueles que procuram forjar uma nova sociedade, está aparecendo um sujeito histórico pleno de germens de vida que vão frutificar num novo amanhã para a vida de nossos povos. Reprimem-no duramente, porém, apesar dos fortes aparatos de segurança, demonstra obstinação e tenacidade em querer concretizar suas esperanças. As tensões da América Central, que é hoje a região crucial do hemisfério, dão testemunho de como os caminhos (trilhas) do Reino passam hoje pelos caminhos que transitam nas lutas dos setores populares dos países desta parte do mundo.
A pastoral, fiel à memória bíblica que dá testemunho de Deus, que liberta aos pequenos da opressão dos arrogantes, unida à leitura dos sinais dos tempos, está sendo convocada a ser formulada, a partir desta opção social, que procura concretizar a opção pela vida. Porque mais vida é uma opção em favor daqueles que praticamente não têm vida. Isto significa, por exemplo, que a pastoral deve interessar-se e participar nas lutas dos camponeses pela reforma agrária; nas reivindicações dos sindicatos que procuram não somente uma melhor distribuição da renda, mas também a criação de estruturas que permitam o desenvolvimento do bem-estar humano de maneira eqüitativa para todos etc.
Para as Igrejas Evangélicas, isto supõe superar aquela atitude que as leva a se distanciar dos problemas sociais. Esse "isolamento do mundo" revela uma inconsciência da presença atuante do Espírito Santo de Deus na história. A ação de Deus é livre e soberana. Portanto, aqueles que têm fé são chamados a unir-se à mesma. Não se pode esquecer que as "portas do inferno não prevalecerão frente à Igreja" (Mt 16.18). Muitas vezes, entende-se este dito de Jesus como se as portas das Igrejas fossem conter os embates das forças do mal. Mas, como se acaba de ver, a proposição de Jesus não chama a adotar atitudes defensivas. Num momento da história latino-americana quando os setores populares, aqueles dos quais é o Reino, tomam a iniciativa da história, as Igrejas não têm argumentos válidos, segundo o ponto de vista do Evangelho, para evitar unir-se a seu movimento, a optar por eles.
NOTAS
1. Esse texto é parte do Capítulo IV, Cristo Tomando Forma na Sociedade e na Igreja, do livro Pelas Trilhas do Mundo, a caminho do Reino, de Julio de Santa Ana, publicado em 1985 pela Imprensa Metodista e Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, e pode ser lido e copiado gratuitamente no site www.biblioteca.metodista.org.br.
2. Um claro exemplo deste tipo de bom pastor foi, nos primeiros tempos da colonização espanhola da América Latina, Frei Bartolomeu de las Casas, amigo dos índios, irmão dos oprimidos. Outro claro exemplo, em nosso tempo, foi Oscar Romero, de quem Pablo Richard e Guillermo Melléndez, Op. Cit., p. 102, assinalam "Pouco a pouco Monsenhor Romero se constituiu na voz dos sem voz. Apesar de sua grande duração, sua homilia dominical, converteu-se no programa radiofônico de maior audiência em El Salvador. Nos últimos anos de sua vida, suas homilias também eram ouvidas em muitos outros países latino-americanos e do mundo". Como pastor também ressaltou com alegria os sinais de esperança que surgiam para o povo, como ocorreu por ocasião da formação da Coordenadoria Revolucionária das Massas, passo importante dado pelo povo salvadorenho no caminho para sua libertação.
3. Benoit Dumas, Op. Cit., pp. 19-20.
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