I - O cartaz de Davi Escrituras
Extraído da Revista Ultimato.
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Em toda a Bíblia não há outra pessoa de tanta notoriedade quanto Davi. Nem Abraão, que Deus chama de “meu amigo” (Is 41.8). Nem Moisés, que preferiu sofrer o desprezo por causa do Messias a possuir todos os tesouros do Egito (Hb 11.26). Nem os grandes profetas, como Isaías e Jeremias, que gastaram todos os seus dias e todas as suas forças para chamar de volta para Deus o povo eleito. Nem Paulo, o maior missionário e maior expositor do evangelho de todos os tempos.
A notoriedade de Davi nasce do seu relacionamento com Deus, o que se pode ver nas atitudes e nas composições poéticas e melódicas do ex-pastor de ovelhas. Tudo se resume nestas duas declarações que se completam: Davi é o “homem de Deus” (2 Cr 8.14) e o Senhor é o “Deus de Davi” (2 Rs 20.5).
“O meu servo Davi”
Deus se refere a Davi como “o meu servo Davi” (1 Rs 11.34, 36 e 38) e diz a seu respeito: “Encontrei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração; ele fará tudo o que for da minha vontade” (At 13.22).
“O suave cantor de Israel”
As versões são diferentes, mas todas chamam a atenção para a musicalidade de Davi (2 Sm 23.1). Ele é “o suave cantor de Israel”, “o doce salmista”, “o mavioso salmista”, “o cantor dos cânticos”, “o favorito dos cânticos” ou “o compositor das belas canções de Israel”. Além de ser “um bom músico” (1 Sm 16.17, BP), tocador de harpa ou cítara, e compositor de muitas das “canções alegres” de Sião (Sl 137.3), Davi era fabricante dos instrumentos musicais usados pelos levitas no serviço de adoração (2 Cr 7.6). A ele são atribuídos 73 dos 150 poemas do livro dos Salmos, um dos mais lidos de toda a Bíblia. Ainda se diz que Davi, quando jovem, teria praticado aquilo que hoje se chama de musicoterapia, para serenar o ânimo do rei Saul em suas estranhas crises emocionais (1 Sm 16.14-23).
“Como o meu servo Davi”
O comportamento de Davi como homem e como rei tornou-se o padrão de conduta para os seus sucessores. Depois da divisão do reino, Deus disse a Jeroboão: “Tirei o reino da família de Davi e o dei a você, mas você não tem sido “como o meu servo Davi” (1 Rs 14.8). Do rei Abias, neto de Salomão, diz-se que “seu coração não era inteiramente consagrado ao Senhor, ao seu Deus, “quanto fora o coração de Davi, seu predecessor” (1 Rs 15.3). Está registrado que Asa “fez o que o Senhor aprova, tal como Davi, seu predecessor” (1 Rs 15.11). De Amazias, o cronista escreve: “Ele fez o que o Senhor aprova, mas não como Davi, seu predecessor” (2 Rs 14.3). E de Acaz registra-se que “ao contrário de Davi, seu predecessor, não fez o que o Senhor, seu Deus, aprova” (2 Rs 16.2).
“Por amor a Davi...”
Exclusivamente “por amor a Davi” (1 Rs 11.12), Deus é capaz de segurar por mais algum tempo a sua indignação contra Salomão por ele ter cedido à pressão de suas mulheres estrangeiras e construído altares para os seus deuses em Jerusalém. Pela mesma razão, não tiraria o reino inteiro de Salomão para dá-lo a Jeroboão, mas deixaria com ele as tribos de Judá e de Benjamim (1 Rs 11.13). A expressão “por amor a Davi” aparece em várias outras passagens do Antigo Testamento (1 Rs 11.32, 34; 15.4; 2 Rs 8.19; 19.34; 20.6; Sl 132.10). Numa delas, Deus promete ao rei Ezequias logo depois de sua cura: “Defenderei esta cidade [Jerusalém] por causa de mim mesmo e do meu servo Davi” (2 Rs 20.6). O cartaz de Davi diante do Senhor beneficiou ora os reis, ora o povo, ora a cidade de Jerusalém.
“A cidade de Davi”
Embora não fosse a sua cidade natal, Jerusalém é chamada de “a cidade de Davi”. O cronista registra que, quando Salomão “descansou com os seus antepassados, foi sepultado na cidade de Davi, seu pai” (1 Rs 9.31). O mesmo se diz do sepultamento de Roboão, Asa, Acazias, Joás e dos demais reis de Judá. A cidade do nascimento de Davi não era Jerusalém, mas Belém (1 Sm 20.6), que também é chamada de “cidade de Davi” (Lc 2.11). Foi Davi quem conquistou dos jebuseus a fortaleza de Sião, que veio a ser “a cidade de Davi” (2 Sm 5.6-8).
“O Filho de Davi”
Jesus era chamado pelo simpático nome de “Filho de Davi” e não por “Filho de Abraão” ou de qualquer outro membro de sua árvore genealógica. Em Nazaré, dois cegos clamavam atrás de Jesus: “Filho de Davi, tem misericórdia de nós!” (Mt 9.27). Após as curas realizadas por Jesus, o povo se perguntava: “Não será este o Filho de Davi?” (Mt 12.23). Mesmo fora do território israelita, uma mulher da região de Tiro e Sidom foi a ele e gritou: “Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim! [pois] minha filha está endemoninhada e sofrendo muito” (Mt 15.22). Dois outros cegos, ao saberem que Jesus estava passando pela estrada de Jericó, gritaram a plenos pulmões para ele: “Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós” (Mt 20.31). E na entrada de Jesus em Jerusalém, no final de seu ministério, tanto a multidão que ia na frente como a multidão que vinha atrás começaram a gritar: “Hosana ao Filho de Davi!” Quando a enorme procissão chegou ao templo, as crianças também entoavam: “Hosana ao Filho de Davi” (Mt 21.8 e 15). “Filho de Davi” era o título que os judeus davam a Jesus, na esperança de que ele fosse o Messias prometido e aguardado.
II - A sujeira de Davi
Esdras ou qualquer outro contemporâneo dele escreveu os dois livros de Crônicas por volta da metade do século 5 antes de Cristo. Mas o autor omitiu intencionalmente tudo o que pudesse denegrir a história de Davi, exceto o caso do recenseamento não autorizado por Deus. O silêncio é total especialmente no que diz respeito ao adultério e aos episódios subseqüentes (2 Sm 11.1 e 1 Cr 20.1).
2. A sujeira é registrada em quatro passagens das Escrituras
Há quatro registros explícitos do adultério de Davi — um extremamente detalhado e três extremamente curtos. A história completa aparece em 2 Samuel. A primeira referência breve diz que Davi portou-se muito bem a vida inteira “exceto no caso de Urias, o hitita” (1 Rs 15.5). A segunda acha-se no título do Salmo 51: “Salmo de Davi. Escrito quando o profeta Natã veio falar com Davi, depois que este cometeu adultério com Bate-Seba”. (Na Bíblia Hebraica e nas Bíblias Católicas, essa introdução está nos dois primeiros versículos do Salmo.) A terceira referência é a mais discreta e aparece na genealogia de Jesus, segundo Mateus: “Davi gerou Salomão, cuja mãe tinha sido mulher de Urias” (Mt 1.6).
3. A sujeira é registrada num dos escritos apócrifos
Jesus Ben Sirac, autor do Eclesiástico, embora tenha escrito um texto muito forte contra o adultério (23.16-27), cita não o pecado, mas o perdão de Deus, em meio a uma série de elogios sensacionalistas a Davi (“brincava com leões como se fossem cabritos, e com ursos como se fossem cordeirinhos”): “O Senhor perdoou seu delito e exaltou seu poder para sempre” (47.11). Para ele, “como a gordura é o melhor da oferta, Davi é de Israel o melhor” (47.2).
4. A sujeira é localizada no tempo e no espaço
O adultério aconteceu logo depois da estação das chuvas, na primavera, a “estação do amor”, quando “aparecem flores na terra” e “as vinhas florescem e espalham sua fragrância” (Ct 2.11-12). Aconteceu na parte da tarde, depois de uma soneca (sesta). Aconteceu em Jerusalém, no “palácio de cedro” (2 Sm 7.2). A mulher morava na vizinhança do palácio (2 Sm 11.1-5).
5. A sujeira começou com a cobiça dos olhos (Mt 5.27-30; 1 Jo 2.16)
Do terraço do palácio, Davi viu acidentalmente “uma mulher muito bonita tomando banho” (2 Sm 11.2). Bate-Seba estaria tomando banho no eirado da sua casa? (Os eirados nem sempre são lugares discretos: Absalão teve relações com as concubinas de Davi no terraço de seu palácio.) Ela tinha acabado de passar pelo seu período de menstruação (portanto não estava grávida do marido). Estava no período fértil, quando a mulher é mais atraente. O quadro inesperado pôs em chamas a natureza humana de Davi e ele se interessou fortemente pela mulher, no mínimo indiscreta.
6. A sujeira se completou com a falta de domínio próprio de Davi
Depois de se informar do nome e do estado civil da mulher e de quem era o marido dela, Davi “mandou que a trouxessem e se deitou com ela” (2 Sm 11.4). O rei não apagou o fogo do desejo sexual ilícito, não negou-se a si mesmo (Mc 8.34), não ofereceu resistência ao mau desejo, “sendo por ele arrastado e seduzido” (Tg 1.14). Então, naquela tarde sinistra, ocorreram duas concepções: a mulher concebeu de Davi e ficou grávida; Davi concebeu de seus próprios maus desejos e ficou “grávido”. Bate-Seba deu à luz uma criança, e Davi deu à luz o pecado. Ele se soltou do alto do tobogã e não teve como parar no meio do escorregador. Foi lançado num atoleiro (Sl 40.2).
7. A sujeira se complicou com a gravidez de Bate-Seba
Como continuar a esconder da família, da sociedade e de Urias o pecado oculto (Sl 32.5; 90.8), se Bate-Seba tem um filho na barriga que o marido bem sabe que não é seu? O jeito é pregar mil mentiras, exercitar a hipocrisia, descer todos os degraus da ética e violar a lei de Deus o quanto for necessário, até chegar ao fundo do poço. Para tanto, o adúltero concede uma licença especial a Urias para que venha passar uns dias com a esposa em Jerusalém e a “engravide”. Davi faz de tudo para Urias se deitar com a esposa: “Vá descansar um pouco em sua casa” (segundo nota de rodapé da NTLH, o texto original hebraico diz “lave os seus pés”, que pode ser entendido como “tenha relações” com a esposa). Até o presente enviado por Davi logo em seguida tem o propósito de proporcionar momentos bem agradáveis entre Bate-Seba e Urias, abrindo caminho para o ato conjugal. Como nada dá certo, Davi vai se enlameando cada vez mais. O rei convida Urias “para comer e beber e o embriagou” (2 Sm 11.13). Urias entende o recado, mas continua irredutível por causa do costume de não tocar em mulher durante as campanhas militares, costume que o próprio Davi anteriormente observava (1 Sm 21.5). Diante do fracasso, o rei despede Urias e manda por ele mesmo uma carta a Joabe para que providencie a morte “acidental” do marido de Bate-Seba. Então o adúltero se casa com a adúltera, agora viúva, na esperança de que o escândalo não venha à tona.
8. A sujeira confessada
Depois de desbloqueado pelo profeta Natã, Davi tem uma sensação insuportável, não só de culpa, mas também de sujidade moral. Por essa razão, duas vezes ele pede: “lava-me” e outras duas pede: “purifica-me”, na confissão do Salmo 51 (v. 2 e 7).
9. A sujeira de Davi predispôs Salomão a redigir suas advertências contra o adultério
Salomão tinha pai e mãe que haviam sido adúlteros. Nasceu pouco depois da restauração de Davi e Bate-Seba. Foi criado pelo profeta que chamou a atenção de Davi para a sua sujeira moral. Era, pois, natural que viesse a ser o autor das advertências mais contundentes e explícitas contra o adultério contidas nas Escrituras. Numa delas, Salomão diz: “Pode um homem guardar uma brasa em sua camisa sem queimar suas roupas? Ou caminhar sobre brasas sem queimar seus pés? Assim acontece com o que se enreda com a mulher do próximo; não ficará impune quem a tocar” (Pv 6.27-29, BV). Foi exatamente isso que aconteceu com seu pai!
III - Contra quem Davi pecou
No Salmo 51, Davi diz que pecou só contra Deus. Ele se equivocou. Ninguém peca só contra o Senhor.
1. Davi pecou contra Bate-Seba. Deixou-a grávida durante a prolongada ausência do marido. “A reação de Bate-Seba é de pânico: a adúltera está sujeita à pena de morte e a prova de adultério está no seu seio” (L. A. Schökel, em A Bíblia do Peregrino, p. 570).
2. Davi pecou contra o pai e contra o marido de Bate-Seba. A mulher tinha alguém acima e alguém ao lado dela . Há dois sérios agravantes: 1) Urias era um estrangeiro (hitita, ou heteu) radicado em Israel e provavelmente um prosélito do judaísmo, pois o seu nome significa “o Senhor é a minha luz”; 2) ele era um dos 37 membros da guarda pessoal de Davi (2 Sm 23.39) e um dos seus principais guerreiros, que lhe “deram um grande apoio para estender o seu reinado a todo o país” (1 Cr 11.10, 41).
3. Davi pecou contra suas sete esposas: Mical, Ainoã, Abigail, Maaca, Hagite, Abital e Eglá (1 Sm 25.39-43; 2 Sm 3.2-5). Foi infiel a elas. Duas eram princesas (Mical e Maaca). Uma era viúva de Nabal. A traição maior teria sido contra Mical, “a esposa de sua juventude” (Pv 5.18), aquela que o amava e pela qual ele matou duzentos filisteus (1 Sm 18.20-28).
4. Davi pecou contra seus filhos: Amnon (o mais velho), Quileabe (ou Daniel), Absalão, Adonias, Sefatias, Itreão e Tamar (todos nascidos em Hebrom) e mais alguns nascidos em Jerusalém (1 Cr 3.1-9).
5. Davi pecou contra suas dez concubinas (esposas secundárias), com as quais teve outros filhos (1 Cr 3.9; 2 Sm 15.16; 20.3).
6. Davi pecou contra o profeta Natã, seu amigo pessoal, a quem ele havia procurado para conversar sobre a construção do templo em Jerusalém (2 Sm 2.1-17).
7. Davi pecou contra o seu próprio povo. Contra aquelas mulheres que saíam “de todas as cidade de Israel ao encontro do rei Saul com cânticos e danças, com tamborins, com músicas alegres e instrumentos de três cordas” e cantavam: “Saul matou milhares, e Davi, dezenas de milhares” (1 Sm 18.6-7). Contra aqueles 600 homens endividados e descontentes que se colocaram debaixo de sua liderança durante o exílio (2 Sm 22.2; 23.13). Contra aqueles desertores de Benjamim, Gade, Judá e Manassés que romperam com Saul e se aliaram a ele (1 Cr 12.1-22). Contra aquela multidão de soldados de todas as tribos que “vieram a Hebrom totalmente decididos a fazer de Davi rei sobre todo o Israel” (1 Cr 12.38). Contra aqueles três chefes do batalhão dos Trinta que se infiltraram no acampamento filisteu para trazer água do poço de Belém para ele beber (1 Cr 11.15-19).
8. Davi pecou contra as nações, porque a sua fama “espalhou-se por todas as terras”, e o Senhor havia feito “com que todas as nações o temessem” (1 Cr 14.17). Os povos viam a glória de Deus por meio do povo eleito e do seu rei. Com aquele mau exemplo, Davi “deu oportunidade aos inimigos do Senhor de desprezarem a ele e até de dizerem coisas horríveis contra ele” (2 Sm 12.14, BV).
9. Davi pecou contra o Decálogo. Embora tenha escrito que “a lei do Senhor é perfeita e revigora a alma” (Sl 19.7) e que ela estava “no fundo do seu coração” (Sl 40.8), Davi quebrou 40% do Decálogo de uma vez só. Em ordem cronológica, ele quebrou o décimo mandamento (“Não cobiçarás a mulher do teu próximo”), o sétimo (“Não adulterarás”), o nono (“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo”) e o sexto (“Não matarás”). É por isso que ele usa duas vezes a palavra “transgressões” no Salmo 32. Ele quebrou o nono mandamento no demorado esforço de manter as aparências e fazer tudo em segredo, às escondidas (2 Sm 12.12).
10. Davi pecou contra Deus. Depois da repreensão de Natã, ele mesmo admitiu: “Pequei contra o Senhor” (2 Sm 12.13). No salmo escrito na ocasião, Davi confessa: “Contra ti, só contra ti, pequei” (Sl 51.4). Por meio do escândalo e da repercussão dele, Davi insultou (NVI), ultrajou (EP e BJ), desprezou (EPC, BP e NTLH) e ofendeu (TEB) o Senhor.
IV - Davi em pandarecos
Embora perdoado imediatamente após o reconhecimento de seu pecado e culpa (2 Sm 12.13), Davi passou cerca de dez anos suportando “a conseqüência da sua conduta” (1 Rs 8.32).
1. A repreensão de Natã
Por ordem do Senhor, Natã fez duas visitas a Davi, uma de apoio e outra de censura, não muito distantes uma da outra. Na primeira entrevista, o Senhor, por boca do profeta, disse a Davi: “Sempre estive com você por onde você andou. Agora eu o farei tão famoso quanto os homens mais importantes da terra. Quando sua vida chegar ao fim, escolherei um dos seus filhos para sucedê-lo...” (2 Sm 7.1-17). Na segunda entrevista, o Senhor declarou a Davi: “Você matou Urias, o hitita, e ficou com a mulher dele. Por isso, a espada nunca se afastará da sua família” (2 Sm 12.1-17).
2. O escândalo
Todos os crimes cometidos às escondidas no episódio de Bate-Seba foram colocados “perante todo o Israel e à luz do sol” (2 Sm 12.12). O que ninguém sabia, todo mundo ficou sabendo. O que era mexerico, o que era suspeita, o que era desconfiança veio à tona nos círculos familiar e social, em Jerusalém e em todo o Israel, de Dã a Berseba.
3. A morte do filho caçula
Davi foi poupado da morte, mas o filho dele com Bate-Seba, não. Deus o fez adoecer e não ouviu positivamente as orações do pai e da mãe. A criança morreu.
4. O incesto de Amnon
O filho mais velho de Davi apaixonou-se por Tamar, sua meia-irmã, filha de Maaca e neta do rei de Gesur. Depois de enganar e violentar a moça “muito bonita”, Amnon teve forte aversão por ela e a expulsou de seus aposentos (2 Sm 13.1-19).
5. A morte do primogênito
Já que Davi não puniu Amnon, naturalmente por falta de autoridade, Absalão, também filho de Maaca e neto do rei de Gesur, fez justiça com as próprias mãos e assassinou o estuprador à traição, dois anos depois (2 Sm 13.1-38). Davi experimentou a mesma dor de Adão — era pai tanto do assassino como do assassinado.
6. As trapalhadas de Absalão
Depois de passar três anos exilado na casa do avô, rei de Gesur (2 Sm 13.38), Absalão voltou para Jerusalém, mas não foi recebido pelo pai nos dois anos seguintes (2 Sm 14.28). Valendo-se de todos os escândalos que diminuíram a admiração que o povo tinha por Davi, Absalão foi, gradativamente, conquistando a lealdade dos homens de Israel. Então, com o apoio ostensivo de Aitofel, até aquele momento conselheiro de Davi (2 Sm 15.12, 31; 16.20-21; 17.1-4), tornou-se rei no lugar de Davi, que foi obrigado a fugir de Jerusalém. A conspiração de Absalão dividiu o país e o exército (os soldados de Israel e os soldados de Davi) e provocou “grande matança” (20 mil mortos).
7. A morte do terceiro filho
No caso de Absalão, Davi deixou que as emoções (o coração) falassem mais alto do que o entendimento (o cérebro). Na batalha dos soldados de Davi com os soldados de Absalão, o rei deu a Joabe a seguinte ordem: “Por amor a mim, tratem bem o jovem Absalão” (2 Sm 18.5). Mas o comandante não deu ouvidos a Davi e, quando viu o rapaz “pendurado entre o céu e a terra”, debaixo dos galhos de uma grande árvore, “pegou três lanças e as enterrou no peito de Absalão” (2 Sm 18.14). Davi chorou mais a morte do terceiro filho do que a morte do então caçulinha (o filho do adultério) e do primogênito (Amnon): “Ah, meu filho Absalão! Meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera ter morrido em seu lugar! Ah, Absalão, meu filho, meu filho!” (2 Sm 18.33).
V - A restauração de Davi
A restauração, sob o ponto de vista humano, é a arte de se colocar contritamente nas mãos do divino Oleiro para que ele refaça o vaso quebrado e lhe dê novamente a forma e a beleza anteriores, depois de qualquer escorregão e queda ou de qualquer escândalo e desastre de natureza moral e religiosa.
Davi despencou da loucura para a realidade
“Cair em si” quer dizer reconhecer o próprio erro, voltar à realidade. Foi o que aconteceu com o filho pródigo (Lc 15.17) e com o tal homem de Corinto que se deitou com a mulher de seu pai (1 Co 5.1; 2 Co 2.5-11). E o que não aconteceu com o fariseu da parábola de Jesus (Lc 18.11-12) e com o anjo da igreja de Laodicéia (Ap 3.17). Cair em si não é outra coisa senão reconhecer as maldades gêmeas – abandonar o Senhor, a fonte de água viva, e cavar as tais cisternas que, cheias de fissuras, não conseguem reter as águas (Jr 2.13). O grande apelo para cair em si está nestas palavras de Jeremias: “Compreenda e veja como é mau e amargo abandonar o Senhor, o seu Deus, e não ter temor de mim” (Jr 2.19).
Depois de cair em si, Davi admitiu o seu pecado
Imediatamente após o desbloqueio, Davi admitiu: “Pequei contra o Senhor”. E imediatamente após a confissão, foi absolvido da culpa: “O Senhor perdoou o seu pecado”. A confissão e o perdão estão no mesmo versículo (2 Sm 12.13). É preciso lembrar para confessar e é preciso confessar para não mais lembrar.
Davi não dividiu a sua culpa com ninguém
A confissão de Davi é uma confissão limpa, tal qual a do publicano: “Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador” (Lc 18.13). Ele não disse que pecou porque suas mulheres e concubinas não o satisfaziam sexualmente. Não pôs culpa no pecado original herdado de Adão (Sl 51.5). Em nenhum momento responsabilizou Bate-Seba pela sua lascívia. Ele colocou o verbo pecar na primeira pessoa do singular, no caso do adultério (2 Sm 12.13; Sl 51.4) e no caso do recenseamento (1 Cr 21.8, 17). A confissão de Davi foi uma confissão “sem comentário” (BP).
Davi entendeu e aceitou o sofrimento relacionado com o seu pecado
Davi não se revoltou contra o juízo misericordioso e terapêutico de Deus nem contra o juízo implacável e oportunista do homem. Aceitou a morte do filho caçula e a agressão física e verbal de Simei, homem da família de Saul. Além de jogar pedras e poeira em Davi, Simei o amaldiçoava e lhe dizia: “Fora daqui, assassino! Você já está recebendo o castigo de Deus pela morte de Saul e sua família; você roubou o trono de Saul e agora seu filho Absalão o tomou de você! Finalmente você está experimentando o seu próprio remédio, seu assassino!” (2 Sm 16.8, BV).
Davi recuperou a delicadeza de caráter anterior
O que o Filho de Deus recomendou ao anjo da igreja de Éfeso — “Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio” (Ap 2.5) — aconteceu com Davi. Ele fechou o parêntesis aberto algum tempo antes do episódio do adultério e voltou a viver e a mostrar delicadeza de caráter. Dentro do parêntesis ficou a sujeira de Davi e fora dele, antes e depois, ficou a sua beleza moral. Basta ver a maneira como Davi lidou com a morte do filho caçula e como tratou o seu acusador, que lhe disse: “Você é o homem rico que roubou a cordeirinha de estimação que bebia do copo do homem pobre e dormia em seus braços”.
Davi recuperou a glória perdida
Recuperou o trono, a autoridade, o prestígio, a comunhão com o Senhor e as bênçãos de Deus. Ele mesmo diz: “Como é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados!” (Sl 32.1). Sobretudo depois do peso esmagador da mão do Senhor. A história registra que Davi “morreu em boa velhice, tendo desfrutado vida longa [70 anos], riqueza e honra” (1 Cr 29.28).
Davi alcançou graças adicionais
O que Paulo diz em Romanos — “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5.20) — cumpriu-se em Davi. Deus havia prometido a Davi que, quando a vida dele chegasse ao fim, ele escolheria para sucedê-lo “um fruto do seu próprio corpo” (2 Sm 7.12). O escolhido era Salomão, fruto do corpo de Davi e de Bate-Seba: “Dentre todos os muitos filhos que [Deus] me deu, ele escolheu Salomão para sentar-se no trono de Israel, o reino do Senhor” (1 Cr 28.5). Salomão nasceu logo após o adultério e era filho daquela que “tinha sido mulher de Urias” (Mt 1.6). Na verdade, Salomão era filho da graça!
VI - Os caçadores de escândalos
Com a boca escancarada, riem de mim e me acusam: “Nós vimos! Sabemos de tudo!” (Sl 35.21)
É muito difícil esconder para sempre dos olhares humanos o pecado cometido em secreto. A experiência de Moisés foi um fracasso: ele só matou o egípcio depois de correr o olhar por todos os lados e não ver ninguém nas proximidades. E ainda tomou o cuidado de esconder o cadáver na areia. Porém, no dia seguinte, um hebreu lhe disse: “Quer matar-me como matou [ontem] o egípcio?”. Moisés então concluiu: “Com certeza tudo já foi descoberto!”. De fato, até seu avô adotivo, o todo-poderoso faraó do Egito, ficou sabendo do crime praticado por Moisés (Êx 2.11-15).
A experiência de Davi também não deu certo. Não há adultério cometido às escondidas mais conhecido do que a aventura sexual de Davi com a mulher de Urias.
Ao mesmo tempo há adultérios não cometidos, assassinatos não praticados e roubalheiras não realizadas que testemunhas falsas, com boca escancarada e prazer diabólico, afirmam: “Nós vimos! Sabemos de tudo!”. O salmista está cercado desses caluniadores e se queixa deles o tempo todo no Salmo 35. São pessoas que se divertem à custa do seu sofrimento (v. 36). Frente a esse problema tão complexo, o salmista deseja que Deus mesmo o defenda (v. 23) e que em breve seus verdadeiros amigos cantem de alegria e se regozijem ao ver provada a sua inocência (v. 27).
José nunca tentou abusar da mulher de seu senhor, embora ela se oferecesse a ele dia após dia. Mas a mesma mulher, furiosa porque seu intento não se realizara, caluniou José perante os empregados e o marido: “[Esse hebreu] entrou aqui e tentou abusar de mim, mas eu gritei” (Gn 39.14).
É prudente não dar espaço para os caçadores de escândalos e agir com sabedoria em caso de calúnia, tomando todo o cuidado para não cometer o crime de que se é acusado!
VII - Por que você adulterou, Davi?
Eu o escolhi e o tirei do aprisco das ovelhas e do pastoreio de ovelhas para ser o pastor do meu povo e você o pastoreou de coração íntegro.(1) Por que você adulterou, Davi?
Quando você era um adolescente, eu o livrei das garras do leão, das garras do urso e da espada de Golias.(2) Por que você adulterou, Davi?
O tempo todo você se conteve e não levantou a mão contra Saul, mesmo quando eu o coloquei ao seu alcance.(3) Por que você não se conteve também no caso de Bate-Seba, Davi?
Você não bebeu a água do poço de Belém, que tanto desejava, só porque ela quase custou a vida de seus amigos, e derramou-a como oferta para mim.(4) Por que você adulterou, Davi?
A sua incômoda descoberta — de que eu morava numa simples tenda enquanto você morava num palácio de cedro — causou-me uma impressão muita boa. Acompanhei todas as outras providências que você tomou para me construir um templo: a compra do terreno, a elaboração dos desenhos e a aquisição do material de construção. A sua contribuição pessoal de 105 toneladas de ouro puro de Ofir e 245 toneladas de prata refinada não me passaram despercebidas.(5) Por que você adulterou, Davi?
Você fez tudo o que eu aprovo e não deixou de obedecer a nenhum dos meus mandamentos durante todos os dias de sua vida, exceto no caso de Urias, o heteu.(6) Por que você adulterou, Davi?
Notas
1. Sl 78.70-72.
2. 1 Sm 17.37.
3. 1 Sm 24; 26.
4. 2 Sm 23.13-17.
5. 2 Sm 7.1-2; 1 Cr 21.22–22.1-19.
6. 1 Rs 15.5.
VIII - Senhor, cometi adultério porque...
Cometi adultério porque, depois de tanta turbulência com Saul, com Nabal, com os cananeus e com certas famílias da tribo de Benjamim, vieram a vitória, o trono, a consquista de Jerusalém, o aplauso, o palácio de cedros, o poder. Então eu me senti forte e achei que não precisava tanto de ti, como antes.(1)
Cometi adultério porque, entre o orgulho e a queda há apenas um passo; porque, como diz o provérbio, “o que faz alta a sua porta, facilita a própria queda”; porque meu coração não era mais humilde na tua presença.(2)
Cometi adultério porque não enxerguei o que estava acontecendo comigo, não me vi próximo do abismo, não me dei conta das muitas mudanças que estavam acontecendo gradativamente em minha vida, roubando a minha sensibilidade moral. Foi por isso que, depois da queda, tive total dificuldade de entender a história que Nabal inventou e me contou.(3)
Cometi adultério porque me tornei como os animais, “que não são governados por ninguém”.(4) E desgovernados estão todos aqueles que encostam de lado o temor que te é devido e se entregam a qualquer desejo da carne, depois de algum estímulo. São pessoas momentaneamente fora de si por terem ficado deslumbradas pelo pecado. Foi por isso que o vulto distante de uma mulher bonita banhando-se foi suficiente para eu pecar contra ti e abrir um grande e desastroso parêntesis em minha vida.
Cometi adultério porque fiz mau uso do poder, dando ordens para todo mundo em benefício do meu intento pecaminoso: mandei meus servos trazerem para mim a mulher de Urias, mandei a mulher de Urias se deitar comigo, mandei Joabe colocar Urias na linha de frente da batalha para que ele morresse. Mandei, mandei, mandei.(5) Cada ordem era uma desobediência a mais.
Cometi adultério porque me esqueci que era pecador desde o meu nascimento, desde que minha mãe me concebeu. Esqueci-me do pecado residente, da pecaminosidade latente, da propensão pecaminosa. Esqueci-me da lei do pecado, da força do pecado, da ousadia do pecado, da loucura do pecado, da insistência do pecado. Dizia para mim mesmo: com os outros pode acontecer, mas comigo, não.(6)
Notas
1. 2 Co 12.10.
2. Pv 16.18, BV; Pv 17.19, RA.
3. 2 Sm 12.1-6.
4. Hc 1.14.
5. 2 Sm 11.1-26. O verbo “mandar” aparece cinco vezes neste capítulo.
6. Sl 51.5; Rm 7.21-23; Mt 26.33.
IX - O fenômeno dos desejos sexuais ilícitos
O adultério está muito mais perto do homem e da mulher, casados ou solteiros, do que se pode imaginar. É uma possibilidade real. Pode acontecer de uma hora para outra, na próxima esquina, no próximo minuto, na próxima oportunidade, principalmente se o candidato ao adultério não se sente vulnerável a esse delito ou a qualquer outro. Daí a sábia exortação prévia de Paulo em 1 Coríntios 10.12: “Quem hoje se sente seguro da sua posição, acautele-se para amanhã não cair” (Tradução de J. B. Phillips); “Tenham cuidado. Se você está pensando: ‘Eu nunca faria uma coisa dessas’, que isso lhe sirva de advertência. Porque você também pode cair em pecado” (BV).
Para Agostinho (354-430), os desejos sexuais são o exemplo mais claro do senhorio da concupiscência sobre a natureza humana. Para pecar contra a castidade, basta “deslocar o olhar do Criador para a criatura”.1
Em junho de 1521, Lutero (1483-1546), aos 38 anos e ainda solteiro, escreveu: “Quem não sente de vez em quando as cogitações e os impulsos da libido e da ira por mais que se oponha e não queira? O furor deles é indômito. Para sua admiração, acrescento que o problema é maior entre fiéis do que entre ímpios. Porque estes cedem e lhe obedecem e por isso jamais experimentam quanto trabalho custa, quanto incômodo acarreta relutar ao pecado e dominar sobre ele. Um ataque como esse exige uma disciplina rigorosa, razão por que Cristo é chamado de ‘Senhor dos Exércitos’ e ‘Rei poderoso na batalha’ (Sl 24.8,10). Os maus pensamentos dos pios são mais fortes do que os dos ímpios. Não obstante [no caso do pios] não os poluem nem os condenam, enquanto que [no caso dos ímpios] acontece tudo isso”.2
Para o reformador protestante, “a castidade [a capacidade de abster-se de relações sexuais e imorais] não é tão fácil quanto calçar e descalçar os sapatos”.3 O ex-ator Guilherme de Pádua, que passou mais de seis anos preso por ter assassinado a atriz Daniella Perez, que agora é crente e membro da Igreja Batista da Lagoinha, quase repetiu Lutero ao confessar ao repórter da Folha de São Paulo que não é tão simples como se pensa não cobiçar outras mulheres: “Eu me doutrino para não perder a disciplina, pois tenho consciência de que a carne milita contra o espírito”. Desde abril de 2006, Guilherme, 36 anos, é casado com Paula Maia, 22, membro da mesma igreja (Folha de São Paulo, 15/10-06, C-3).
No tratado Breve Forma do Pai-Nosso, publicado em 1521, Lutero ensina a seguinte oração: “Ao ver uma pessoa, uma imagem ou uma criatura linda, permite que ela não se torne uma tentação para nós, mas um motivo para amar a castidade e louvar-te em tuas criaturas”.4
Fritz Ridenour, autor de Como Ser Cristão sem Ser Religioso, lembra que “a velha natureza ainda está presente em cada cristão, tentando impedir que a nova natureza assuma o comando”. Para ele, “o cristão é uma guerra civil ambulante”.
Vozes não-religiosas, como a do juiz brasileiro Álvaro Mayrink da Costa, dizem que “em todo homem há um leão adormecido e acordá-lo é só uma questão de oportunidade”.
Notas
1. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. v. 2. p.44
2. LUTERO, Martinho. Martinho Lutero; obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1992. v. 3. p.185.
3. Idem. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1995. v. 5. p.229.
4. Idem. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 2000. v. 2. p. 194.
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